Renina Katz e a paixão pela gravura

5 de Setembro de 2021
RENINA KATZ: "Sem título", gravura em metal, 1967.

João Paulo Ovidio*

Com uma trajetória profissional que ultrapassa setenta anos, o nome de Renina Katz está gravado na História da Arte no Brasil, seja em razão de sua constante presença em livros sobre o assunto – sendo considerada uma referência ímpar para os artistas e pesquisadores, especialmente os dedicados à gravura –, quanto por ter sua obra gráfica espalhada por diversas instituições, do norte ao sul do país.  Com uma ótima circulação e recepção desde a década de 1950, sua produção foi motivo de textos escritos por críticos nas colunas de Artes Plásticas, bem como posteriormente chegou a ser adotada como objeto de pesquisa na academia. Não obstante, ainda há um vasto universo a ser explorado, séries inteiras que são mencionadas com frequência, amplamente elogiadas, porém, carecem de uma análise, um olhar atencioso para a singularidade. Por isso afirmo: conhecemos apenas a superfície, precisamos ir além.

Nascida na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, em 30 de dezembro de 1925, Renina Katz é filha de um casal de judeus poloneses que se refugiaram no Brasil após o término da 1ª Guerra Mundial. Desde pequena manifestava aptidões artísticas, sendo incentivada pela família a tocar instrumentos musicais – como faziam seus primos, que anos mais tarde seguiram a carreira de musicistas –, mas gostava mesmo era de desenhar, copiar as ilustrações dos livros infantis e das histórias em quadrinhos. Aos 19 anos, após concluir o ensino secundário, disse aos pais que desejava ser artista plástica. Eles não a contrariaram, no entanto, exigiram que procurasse uma instituição de ensino superior para obter uma formação sistematizada. E assim ela o fez, se inscreveu no vestibular para a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), em 1945. Aprovada no Curso Livre de Pintura, pouco tempo depois do seu ingresso começou a ter uma atuação engajada nos movimentos estudantis, sendo representante na União Nacional dos Estudantes (UNE), no Diretório Central dos Estudantes (DCE) e na União Metropolitana dos Estudantes (UME). Concomitantemente, em 1946, matriculou-se no curso de Desenho de Propaganda e de Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde recebeu orientação de xilogravura e gravura em metal respectivamente de Axl Leskoschek e Carlos Oswald. Frequentou o atelier particular do primeiro, na Glória, e com o segundo deu continuidade aos estudos no Liceu de Artes e Ofícios (LAO). Além disso, afirmou ter sido com Candido Portinari e suas aulas que aprendeu a pintar.    

Mas se ela cursou Pintura, por quê quase não atuou nesse meio expressivo, com exceção da incursão na aquarela anos mais tarde? A resposta é simples e foi dada à Elaine Bittencourt durante uma entrevista: “Eu me apaixonei pela gravura. Você não explica uma paixão. [...] a gravura tem um aspecto de sedução que é uma maravilha. Primeiro pelo seguinte: ela exige uma atitude.” (BITTENCOURT, 2008, p. 18). O responsável por despertar sua paixão foi Axl Leskoschek, gravador austríaco que havia se refugiado no Brasil devido os conflitos da 2ª Guerra Mundial. Ele contribuiu não só para sua formação, como também para a de Danúbio Gonçalves, Edith Behring, Fayga Ostrower e Ivan Serpa, para destacar apenas os grandes nomes da arte brasileira. Ela se permitiu experimentar outras técnicas, formas e questões, construindo um projeto novo a cada fase, tendo como base as lições aprendidas. Poderia ter sido um amor de verão, mas se revelou uma paixão duradoura, uma devoção às artes gráficas, o encanto pelo processo, a sensação de arrebatamento. 

Em sua juventude, Renina Katz e seus amigos subiam os morros da cidade e lá faziam retratos e paisagens a partir da observação direta (KATZ, 1997, p. 27). Foi assim que se iniciou sua fase social, recorte que compreende de 1948, quando ainda estava em formação, até 1956, momento em que já havia conquistado destaque no meio artístico. Nos primeiros trabalhos figuram cenas domésticas, de maternidade e personagens do cotidiano, com destaque para a vida da mulher negra. Em determinadas gravuras é possível observar a adoção de Käthe Kollwitz como um modelo, presente tanto na escolha do meio expressivo, como na temática, por vezes, quase uma atualização da imagem para a realidade brasileira. Nessa época participava assiduamente do Salão Nacional de Belas Artes (SNBA), na Divisão Moderna, destacando-se na seção de Desenho e Artes Gráficas. Foi nesse certame, em 1951, que conquistou o Prêmio de Viagem ao País com a litografia Vigília, uma nítida referência à Miséria (1897), da artista alemã. A láurea foi um divisor importante, dado que no último quadriênio da fase social passou a produzir séries, como é o caso de Camponeses sem terra: os retirantes (1953-1954); o conjunto que deu origem ao seu primeiro álbum, intitulado Favela (1956); e cenas de trabalho, dividida entre a representação de camponeses e operários. Parte significativa dessa produção se encontra no álbum Antologia Gráfica (1977), editado por Julio Pacello, e, igualmente, corresponde ao repertório conhecido pelo público. Ocasionalmente encontro novas gravuras em leilões, de diferentes técnicas, desconhecidas até para quem lhe acompanha de  longa data. Ao olhar para os arquivos, avalio-as como raridade, verdadeiros “achados”.


Figura 1 – Renina Katz. Favela. Xilogravura, 28 x 20 cm.

Na xilogravura Favela (Figura 1), a artista representa uma cena sem dar muitos detalhes do local onde as personagens estão inseridas, aspecto que reforça a importância do título. No primeiro plano, uma mulher com rosto de perfil, levemente inclinado para baixo, segura o braço como gesto de cansaço pelo esforço físico realizado. Um pouco atrás, no lado esquerdo, observamos um grupo formado por mais três mulheres, que semelhante a ela vestem roupas brancas e usam lenço na cabeça. As poses se alternam: a primeira está sentada, a segunda apoia uma mão na cintura e usa a outra para segurar o fardo de lenha, enquanto a terceira o equilibra sem nenhum ajuda. Ao fundo, deslocada, encontramos a silhueta de mais uma figura feminina, com os dois braços erguidos. E essas alternâncias de movimentos contribuem para uma maior dinâmica da cena. As personagens não mantêm contato visual com o observador, quase não vemos seus rostos, estão centradas em suas atividades. Na composição há também uma cabra, de costas para nós, que inicialmente parece estar avulsa, mas sua presença serve para reforçar o ambiente do morro, diferenciando-o do asfalto. A série da qual faz parte se divide em dois assuntos centrais: carregadoras de lenha, exemplificado aqui, e as lavadeiras, figura recorrente na iconografia da arte moderna brasileira.      

Aqui não darei tanta atenção às xilogravuras e os linóleos, recorte já abordado em minha monografia defendida em 2019 para obtenção do título de Bacharel em História da Arte, na Escola de Belas Artes da UFRJ, assim como na dissertação de mestrado em andamento pela mesma instituição. Como foi dito anteriormente, a trajetória da artista ultrapassa setenta anos, portanto, a fase social representa apenas pouco mais de 10% do total de sua produção. Quando rompeu com a figuração, em 1956, devido a um encadeamento de crises – estética, ideológica, existencial e profissional –, Renina Katz passou a fazer experiências com nanquins e guaches, dando por encerrado um ciclo e mostrando estar disposta a se reinventar. Expôs em salões e bienais, recebeu atenção da crítica, conquistou prêmios, vendeu trabalhos, mas a transição para a década de 1960 continua nebulosa, pois a maior parte das informações se devem a recortes de jornais, restando pouquíssimos registros de imagens e do paradeiro dos desenhos.  Manteve o papel como seu principal suporte, dedicou-se à pesquisa de cor e relações cromáticas, criou paisagens imaginárias, repletas de lirismo, e fez disso a característica mor de toda sua obra.  


Figura 2 – Renina Katz. Sem título (1967). Gravura em metal, 25/110, 29,5 x 39,5 cm.

Em 1951, casou-se com o jornalista Fernando Pedreira e com ele se mudou para São Paulo, onde fixou residência. Não demorou muito tempo até que fosse convidada para substituir Poty Lazzarotto, seu amigo, no curso de Gravura e Artes Gráficas do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Lá permaneceu por três anos, até ser transferida com outros professores para a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) a fim de criar um curso de nível superior para a formação de professores de artes. Em meio a isso, Abelardo de Souza a convidou para ser a sua assistente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Com uma vida agitada, na década de 1960 se desdobrava entre São Paulo e Rio de Janeiro, para dar aula nessa última instituição mencionada por lá, e na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) e Museu de Arte Moderna (MAM) por aqui. A série Cárceres, sobre a qual falarei de uma peça mais adiante, tem reminiscência em trabalhos desse período. Na gravura em metal Sem título (1967), por exemplo, observamos: uma ave de bico pontiagudo, de perfil, ocupando o lado superior esquerdo; setas com diferentes detalhes apontando para o centro; um olho aberto, sem vínculo com um corpo, no canto inferior direito (Figura 2). Metafísico, onírico, simbólico. Não é um caso isolado, visto que Mário Schenberg se refere a esse período como realismo mágico (ABRAMO, 2003, p. 293). Se é dificílimo encontrar gravuras em metal  na chamada fase social, torna-se ainda mais raro quando se trata da década de 1960/70; e digo isso porque em 5 anos de pesquisa não encontrei nenhuma outra peça que se aproxima dessa, apenas pinturas que compartilham dos mesmos elementos visuais.     


Figura 3 – Renina Katz. Sem título (1970). Serigrafia, 25/100, 70 x 50 cm.

No MAM-Rio, Renina Katz se aproximou de Dionísio Del Santo, responsável pela Oficina de Serigrafia. Nos anos de 1968 e 1969, ela lançou álbuns com obras feitas sobre essa técnica, com tiragem de cinquenta exemplares, de modo que em 1970 mais dois foram publicados, um para o Ministério dos Transportes  e o outro, constituído por dez peças e um poema de Hilda Hilst, editado por Julio Pacello. Em vista disso, Sem título (1970) é fruto desse contato, produzido nesse curto intervalo. Com uma economia de cores, restringiu-se a tons de azuis, vermelhos, vinho e branco, tal como na forma, por meio de círculos, linhas retas, inclinadas e curvas (Figura 3). O grande círculo sobre o fundo azul escuro, posicionado no centro da parte superior, remete a noite de lua cheia. O modo como as linhas verticais sobrepõem os retângulos na horizontal, rumo ao arco de volta perfeita, alude a trilhos de trem que findam no túnel. Os elementos dão conta de formar uma narrativa mesmo com a ausência do meio de transporte na cena. Embora a artista não tenha se interessado pelo concretismo na década de 1950, nem transicionado para as tendências abstratas como fez alguns de seus colegas, posteriormente teve essa fase geométrica, chegando até a fazer na década seguinte uma série em homenagem ao Teorema de Pitágoras. 

Com o retorno definitivo para São Paulo, abandonou gradativamente a serigrafia, dando lugar para uma técnica pouco explorada no passado, tornando-se então uma referência no assunto pelos resultados obtidos: a litografia. A imersão se deu em razão da fundação da Gráfica Ymagos, em 1973, por Elsio Motta. Considerada uma técnica bastante pictórica, acredita ter alcançado maior liberdade por meio dela, com uma rica quantidade de cores, luz e transparência, questões que passam a ser norteadoras em seu trabalho. A série Cárceres, desenvolvida entre os anos de 1978 e 1979, como sequência do projeto iniciado com O Vermelho e o Negro, limita-se ao preto e branco com a adição do vermelho, uma cor de impacto. Instituições como o Museu Nacional de Belas Artes, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, possuem algumas dessas litografias em seus acervos, não sendo fácil encontrá-las disponíveis em leilões. 


Figura 4 – Renina Katz. Sem título (1984). Litografia, 4/80, 68,5 x 48,5 cm.

Sem título (1984) é uma reprodução, numerada e assinada, que pertence a uma tiragem feita especialmente para Anistia Internacional (Figura 4), indicação presente no verso do papel. A imagem em questão pertence a Cárceres, considerada pela crítica de arte como uma das séries mais expressivas da artista. A tensão entre aprisionamento e liberdade retoma o viés político da fase social, porém, dessa vez com maior autonomia, sem o discurso literal de antes. Do conjunto ao qual pertence, esta gravura foi a única em que pude notar a figura humana, sendo mais frequente a representação de aves de diferentes espécies. Localizada no canto inferior esquerdo, vemos somente o rosto de uma mulher que nos encara fixamente, nada mais. As grades, constante em toda a série, estão quase acima de sua cabeça, na altura da testa, deixando a visão livre. As linhas verticais das barras se envergam, como resultado de uma força provocada a fim de romper a estrutura, um indício de reação. Já o contraste entre o preto da tinta e o branco do papel delineia formas que se tornaram características em sua produção, sugerindo aqui ventos tempestuosos, espuma marinha, descargas elétricas, entre outros fenômenos. 


Figura 5 – Renina Katz. Terceira caminhada. Litografia, 3/40, 77 x 61 cm. 

A litografia  se constitui na técnica que Renina Katz dedicou maior parte de sua produção artística, por isso a encontramos em maior quantidade em coleções, livros e leilões. Azuis, verdes,  alaranjados, uma explosão de cores, variações, combinações, contrastes. Desvinculada da figuração, também nega o termo “abstrato”, preferindo fugir das classificações. O que seria então para ela a Terceira Caminhada? (Figura 5) É a questão que o observador se faz diante de sua obra. Em entrevista à Elaine Bittencourt, declarou preferir não dar título aos trabalhos, porque isso mais desnorteia do que orienta, visto que pode limitar a interpretação e gerar associações com o figurativo. Para evitar isso ao máximo, a pedido de Elsio Motta, escolheu palavras que não remetem a imagens concretas, sendo a principal função diferenciar uma gravura da outra. Além de atribuir identidade, os nomes auxiliam na organização de acervos (BITTENCOURT, 2008, p. 40). Em vista disso, gostaria de chamar atenção para o fato de existir uma litografia com a mesma composição intitulada Primeira Caminhada. Nesse caso, os números ordinais foram usados para indicar uma sequência, de modo que a partir da mesma matriz imprimiu primeiro em preto e depois em azul.

Ver um trabalho, ouvir sua fala, ler um texto, são pequenas ações que nos fazem entender sua paixão pela gravura e nos apaixonarmos por tudo que fez. Na posição de historiador da arte, encaro como minha responsabilidade despertar esse mesmo sentimento por meio da escrita, compartilhar o que sei, motivar novas considerações, até mesmo para tensionar com o que foi dito. Assim como é próprio desse meio expressivo, questiono: Quais são as suas impressões sobre a obra gráfica de Renina Katz?   

Referências: 
ABRAMO, Radha. Renina Katz e sua arte. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, set/dez. 2003, p. 287-302.
BITTENCOURT, Elaine. Renina Katz. 1ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
KATZ, Renina. Renina Katz. São Paulo: EDUSP, 1997 - (Artistas da USP 6). 

*João Paulo Ovidio é mestrando em Artes Visuais, na linha de História e Crítica da Arte do PPGAV/EBA/UFRJ e Bacharel em História da Arte pela mesma instituição. Desde 2016 desenvolve pesquisa sobre a gravura moderna no eixo Rio de Janeiro e São Paulo, com ênfase para o discurso da imprensa, grandes exposições e núcleos de ensino. É editor chefe da Revista Desvio. Contato: joaopaulovidio@gmail.com | @ovidio_jp