Dionisio Del Santo: a serigrafia e a interação linha, cor e ritmo

10 de Setembro de 2021
DIONISIO DEL SANTO: "Vibrações Lineares“, 1981. Permuta XXXI ; 1/1.

Almerinda Lopes*

Foi como desenhista de letras e ampliador de cartazes, na Grafica Tupy, de propriedade do pintor Orestes Acquarone, e em outros empreendimentos congêneres, que Dionisio Del Santo teve contato inicialmente com a litografia e depois com a serigrafia (na metade da década de 1950). Embora iniciasse, nessa época, a produção de serigrafias artísticas, de formas sintéticas ou esquemáticas, atribuía-lhes, então, uma formulação figurativa.

DIONISIO DEL SANTO: "Viagem", serigrafia colorida, 1966

Na década seguinte, o artista ampliava as pesquisas com linhas e formas geométricas, e descobriria as possibilidades inesgotáveis desse processe gráfico. 0 artista iria romper com a conotação meramente artesanal e reprodutível que era atribuída, até então, à serigrafia, atribuindo-lhe arrojo criativo e nobreza. Mostrava que era possível elaborar imagens artísticas, de grande rigor construtivo e harmonia cromática, aliando essas peculiaridades ao domínio técnico impecável adquirido em anos de trabalho com artes gráficas e publicidade. No entanto, esse gênero de produção não iria garantir, de início, a sobrevivência do artista, em função do preconceito contra a gravura, em especial a serigrafia, ou porque na época “ninguém queria obras concretas, nem de graça”, como enfatizou Del Santo. Sem abrir mão de viver do trabalho de gravador, o artista tratou de pôr em prática o excepcional domínio técnico na produção serigráfica, fazendo a tiragem de obras de outros artistas, para ganhar a vida.

DIONISIO DEL SANTO: "Permuta LXI 315 - Símbolo-cor (110150)", serigrafia colorida de 1975.

A proposta de criar uma cooperativa de artistas para a produção de artes gráficas foi-lhe feita por Carlos Scliar, ao entrar em contato com a obra do capixaba na primeira individual do artista na Galeria Relevo, no Rio de Janeiro, em 1965.  Essa atividade, desenvolvida até o início dos anos 1970, não se restringiu à impressão da tiragem (como lhe fora proposto inicialmente) mas era o capixaba quem definia as cores, e muitas vezes até reestruturava o esboço que lhe era entregue pelos respectivos autores. Por essa razão, depois de ter elaborado imagens gráficas para mais de quarenta artistas brasileiros, o capixaba propôs a assinatura conjunta das obras.  Diante da resposta negativa, que deu a Del Santo a certeza de que os artistas para os quais trabalhava o viam apenas como mero artesão, decidiu deixar de fazer esse gênero de trabalho para se dedicar exclusivamente à sua própria obra.

Tal gênero de trabalho o aproximou de muitos artistas consagrados, tornando-o  muito conhecido no meio artístico, ampliando a comercialização de suas próprias gravuras. Auferia a partir daí rentabilidade suficiente para adquirir um imóvel no bairro de Santa Teresa e deixar o porão onde morava até então. Ali passou a residir e a trabalhar, recluso no ateliê como um verdadeiro operário da arte.

Perseverante, disciplinado e amante da solidão - que considerava "fundamental ao exercício criador” -, Dionisio Del Santo encarava uma longa jornada diária no ateliê, que começava de manhã e não raramente adentrava a noite. Chegou a afirmar convicto "que só assim atingira a maturidade da linguagem”.  Avesso à bajulação e à troca de favores, que o capixaba dizia dominar o sistema artístico, não iria investir com a mesma intensidade na exposição de sua obra, prática que considerava “irritante" e "enfadonha”. 


DIONÍSIO DEL SANTO: "Permuta XVIII", série Curso UNB I, produzida em 1975 no curso livre que deu na Universidade de Brasilia

Revelando não apenas conhecimento e habilidade no preparo de matrizes e impressão das imagens serigráficas, mas principalmente vigor e potencial criativo, o artista iria produzir, em poucos anos, um avantajado número de obras gráficas, formatadas por linhas retas (verticais, horizontais e diagonais), labirintos e círculos concêntricos. Aplicava sobre as formas uma gama variada de cores vibrantes, que atestavam o colorista primoroso e sensível. A maior ou menor aproximação das linhas e da sutileza das cores dava origem à estruturação do que o artista chamava de "fragmentos rítmicos”, que dialogam com a Optical Art, produção que levou às últimas consequências, em especial durante as décadas de 1960 e 1970. 

Criou séries variadas de serigrafias, de estruturação plástica primorosa, que instigam a percepção do observador, recorrendo a um processo denominado de permutação. Del Santo dizia ter pegado emprestado dos concretistas europeus Josef Albers, Max Bill, Victor Vasarely, e de Almir Mavignier (brasileiro aclimatado na Alemanha).  A permutação consistia em fazer tiragens de obras únicas, mantendo a mesma composição e modificando de uma para a outra o espectro de cores. A impressão de setenta a cem cópias distintas, isto é, com sensíveis alterações no registro de cores, atestava, por si só, a sua competência e cumplicidade criativa e técnica, que não se descolam do exímio colorista que ele foi. Entretanto, esse processo de obter grande número de cópias de colorido requintado, e diferenciado de imagem para imagem, foi facilitado ou tornou-se mesmo possível graças ao emprego de tintas transparentes.

DIONISIO DEL SANTO: "Permuta LV", serigrafia colorida de 1975

Assim, por meio da permutação, o artista capixaba subverteu duas características peculiares à gravura: a reprodutibilidade e a seriação, para fascínio dos colecionadores. Acrescentou, ainda, ao projeto concretista brasileiro um processo gráfico que não havia sido explorado, até então, pelos integrantes dos grupos hegemônicos.

Del Santo estruturava as formas e o espaço por linhas paralelas verticais, horizontais, que em alguns casos remetem a esquemas topológicos ou labirínticos. Em muitos casos, era a maior ou menor proximidade das linhas que produzia uma sensação visual capaz de sugerir ao olhar formas geométricas: quadrados, círculos, losangos, trapézios, paralelogramos. Essas articulações formais parecem pautar-se nas leis da gestalt, caras aos concretistas, e que o nosso artista tentava concretizar e pôr em prática, depois de estudá-las. 

Essas formas emergem e reverberam em meio a um arcabouço linear preciso, interferindo ou modificando a ordenação rítmica e perceptiva das linhas e cores e problematizando o olhar. Essas formulações lineares geométricas sugerem ora um movimento centrípeto ora centrífugo, confirmando o diálogo do artista com a Optical Art. O capixaba assumia assim lugar de destaque entre os brasileiros que produziram obras sintonizadas com os postulados dessa vertente, derivada da arte concreta.


DIONISIO DEL SANTO: "Sem título", serigrafia colorida, tiragem única, 1/1.

Depois de deixar de produzir serigrafia por algum tempo para se dedicar exclusivamente a pintura, Del Santo reatava novamente os laços de afinidade com as artes gráficas, pondo em pratica, a partir do final da década de 1980 um procedimento que começou a experimentar no final da década anterior: a serigrafia de matriz espontânea. Sobre um fundo monocromático de tons baixos, sobrepunha uma composição de linhas estilhaçadas e estruturas geométricas de tons mais claros e efusivos. O autor lançava sobre a matriz, no ato da impressão, partículas de papel picado ou rasgado, que modificavam a composição e atribuíam, na maioria dos casos, certo lirismo a essas obras gráficas. Os fragmentos irregulares atenuavam a rigidez geométrica, criando uma euforia rítmica, festiva e pulsante de estruturas não fixas, que algumas vezes fazem lembrar constelações. Por esse processo, imprimia também tiragens de obras únicas, recorrendo à sobreposição de tintas opacas e transparentes.

O artista revelava, nesse momento, maior liberdade nas experimentações e interferências nas matrizes de serigrafia, produzindo ao longo da década seguinte, pelo mesmo processo da matriz espontânea, uma série de formas orgânicas de tons soturnos, que se abeiram da abstração lírica. As linhas quebram-se ou tornam-se mistas, formadas por segmentos de retas e curvas, o que lhes atribuiu certa maleabilidade.

DIONISIO DEL SANTO: "Dobra transparente",  Permuta II = 1/3, serigrafia colorida de 1981.

Para potencializar os efeitos visuais e as texturas, interferia sobre as matrizes, no momento da impressão, com uma máscara sobre a qual depositava matérias inusitadas, entre elas pó de grafite e fragmentos de folhas vegetais secas, para atribuir as imagens certa densidade ou rugosidade. Em meio a esse amalgama de tons soturnos, metálicos e ferruginosos, irrompem as formas irregulares, de dimensões variadas, que sugerem relevos de configurações biomórficas. Tais composições configuram a afirmação do artista de que a cor não era "apenas luz ou atmosfera, era também argamassa. 

Por sua obra gráfica, o artista obteve em vida reconhecimento e deferência da crítica, que a avaliou como uma das mais consistentes e coerentes entre os concretistas brasileiros. Porém, contraditoriamente, essa produção circulou pouco, o que a tornaria conhecida apenas por um restrito grupo de colecionadores, artistas e especialistas. E por não ter sido, até o momento, devidamente estudada e avaliada, não encontrou, ainda, o lugar que lhe compete no âmbito do modernismo brasileiro. Como bem observou Marcos Lontra, "num país onde o mercado de arte, nas últimas décadas, encarregou-se de valorizar, por vezes exageradamente, a pintura brasileira, surpreende o discreto investimento sobre a produção de Dionisio Del Santo, sem dúvida alguma das mais instigantes e sensíveis”. 


Dionísio Del Santo em seu ateliê entintando uma tela de serigrafia

Os incomparáveis domínios criativo e técnico que Del Santo conquistou na elaboração de serigrafias não passaram indiferentes à crítica e aos colecionadores, bem como a artistas contemporâneos. Referiram-se ao capixaba como um dos mais ousados e meticulosos gravadores modernos surgidos no país na metade do século XX. Tais características também o tornaram um dos "mestres" mais respeitados pelos artistas que participaram das oficinas que Del Santo ministrou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Centro de Artes da Universidade Federal do Espirito Santo. Em depoimento a Daniela Name, por ocasião do anúncio, no Rio de Janeiro, da morte do artista ocorrida em Vitória, em 1999, Cildo Meireles dizia-se orgulhoso "de guardar como relíquias os adesivos impressos por Dionisio Del Santo, entre 1969 e 1970, para as garrafas de Coca-Cola de suas Inserções em circuitos ideológicos". "Por sua vez, a conhecida pintora Beatriz Milhazes, que também aprendeu gravura com o artista capixaba, afirmava na mesma matéria à jornalista: "Ele deu à serigrafia uma nobreza que ela não tinha. Passou sua técnica aos alunos e fez com que a impressão deixasse de ser vista como uma coisa menor"

 

*Almerinda Lopes é Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisadora da obra de Dionísio Del Santo

Esse texto é parte integrante do catálogo da exposição “Dionísio Del Santo”, ocorrida entre novembro de 2008 a março de 2009 no Museu de Arte Moderna do Espírito Santo – Dionísio Del Santo.