Há
alguns meses atrás, ao organizar as gravuras produzidas recentemente, percebi
que anjos e penas haviam tomado o primeiro plano da minha imaginação. Essa
constatação despertou minha curiosidade e, procurando o início desse processo -
o como, onde e quando aquilo havia
começado, identifiquei Um anjo para Vitor,
gravura
que fiz para meu filho caçula pouco depois que ele nasceu. A imagem vem da
ideia comum de que cada ser humano tem seu anjo guardião. Então imaginei que, para
proteger um bebê de colo, nada melhor que um outro anjo-menino de cabelos
encaracolados e carinha de sapeca, apenas contemplando de mãos postas.
Patricia Pedrosa, gravadora contemporânea
Tempos depois, quando
concorria a uma vaga para mestrado, me confundi com o horário e cheguei muito
cedo no dia da prova oral. Então fui visitar meu Mestre Kazuo Iha, professor de
litografia da EBA¹, que me ofereceu
gentilmente uma pedra para desenhar para que o tempo de espera passasse mais
rápido. Nesse dia gravei Um anjo para
Mestre Antonio², motivada pelos estudos sobre
o Colonial e o Barroco Brasileiro retomados para o concurso. Depois veio a
litografia Asas de Menino, novamente
inspirado em Vitor. Na sequência, a xilogravura “O Músico de Ataíde”³ e a litografia "A sombra", que registra o lado escuro de cada ser no
sentido psicanalítico, como arquétipo, que nos lembra de que mesmo enquanto
somos anjos, temos nosso lado sombrio.
Até então não havia
percebido que os anjos tinham se tornado um tema recorrente, que dialogava com
o Barroco Brasileiro, mas que o ultrapassava. A arte barroca no Brasil tem o
emblema do trânsito entre a primitividade dos indígenas e a modernidade de uma
nação que viria a ser, em estado de formação. A figura do anjo chega ao Brasil
neste momento mas, como figuração ligada à espiritualidade humana, sobrevive a
esse tempo e chega a nós. Me agrada esta figura intermediária entre o homem e o
divino, muito presente na arte colonial e que alcança a contemporaneidade.
Junto com o anjo, a pena foi tomando lugar no meu pensamento criativo e se tornou
um elemento significativo (Poesia Alada).
Simples e bela, símbolo de leveza e, no meu entender, também de desprendimento,
que me remete a algo de que se despoja quando substituído por outro novo. Penso
que a pena seja para o anjo, o mesmo que a pétala é para a flor.
PATRICIA PEDROSA: "Asas de menino", litografia colorida de 2015/2017.
A partir da consciência da presença dos anjos nessa fase do meu trabalho, esta série passou a tomar corpo. O trabalho mais recente é Fantasia Barroca, uma xilogravura colorida de 1,30 x 0,60 cm na qual uma anjo-guardião abre suas asas potentes sobre 4 anjos-meninos. Três desses anjinhos são releituras livres que realizei a partir de obras dos mestres do barroco brasileiro: Mestre Valentim (4), Aleijadinho e Mestre Ataíde. Da direita para a esquerda temos o anjo de Mestre Ataíde (Anjo 3), em seguida o anjo do Mestre Antônio/Aleijadinho (Anjo 2), depois o do Mestre Valentim (Anjo 1) e finalmente o meu anjo, o Anjo 0. Com o rosto em branco, como daqueles painéis vazados em parques de diversão para que encaixemos o rosto para fotos, o Anjo 0 é o lugar comum, pode ser cada um de nós. Nesta gravura, recortei a matriz para as figuras dos anjos-meninos, produzindo sub-matrizes para que recebessem cores na mesma entrada que a matriz principal, e para que fossem intercambiáveis. As técnicas da gravura são muito antigas, sendo a xilogravura a mais antiga delas, entretanto, continua sendo uma linguagem em constante experimentação e renovação. A madeira utilizada foi o fundo do berço do Vitor – um gravador não consegue descartar nenhuma madeira assim tão fácil! Apesar da escolha ter sido apenas em função do tamanho da chapa, sem um objetivo conceitual inicial, ao final deste texto, me dei conta de que até a matriz teve significado pertinente. Faço relações entre o berço e a matriz: o berço que acolhe a criança/ a matriz que acolhe a imagem; do berço sai a criança para seu crescimento/da matriz sai a imagem para a impressão; do fundo do berço-matriz sai a criança-anjo carregando consigo toda a potencialidade do vir a ser e das infinitas rotas de vôo possíveis /a madeira-matriz é o berço de todas as imagens que o artista queira criar. Quando lidamos com anjos, nada é por acaso.
Patricia Pedrosa
Petrópolis, 03 de novembro de 2020.
1-Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2-Antônio Francisco Lisboa, escultor e arquiteto, mais conhecido como o
Aleijadinho (Ouro Preto, c. 1730 – Ouro Preto, 1814).
3-Manuel da Costa Ataíde, pintor, conhecido como Mestre Ataíde (Mariana,
1762-1830).
4-Valentim da Fonseca e
Silva, escultor, mais conhecido como Mestre Valentim (Serro, Minas Gerais, c.
1745 – Rio de Janeiro, 1813).
*Patricia Pedrosa é artista gravadora contemporânea, Professora de litogravura na
Escola de Belas Artes da UFRJ, doutora em Artes Visuais e autora dos livros “Maria
Bonomi com a gravura: do meio como fim ao meio como princípio” e “Oficina de
litografia”.