A gravura visceral de Leda Watson

21 de Maio de 2021
Leda Watson, artista gravadora ao lado de sua prensa alemã no Ateliêr de Brasilia, onde continua lecionando gravura.

"A gravura é uma expressão artística que tem um lado exuberante, espontâneo e tem um lado racional. Eu tenho os dois dentro de mim. Como professora, tenho um lado racional super organizado e tenho o lado "pluff" da explosão total."
Leda Watson

Leda,  gostaria que você nos contasse um pouco de sua história como gravadora e de sua  carreira ao longo destes anos.

Há mais de 20 anos atrás, eu tive uma pretensão como gravadora e artista plástica, de  tomar depoimentos de grandes artistas gravadores. Cheguei a colher vários, que eram registrados em fitas k-7. Fiz inclusive uma entrevista com Isabel Pons e uma serie de outros artistas. Era minha pretensão escrever um livro sobre a história da gravura brasileira com essas entrevistas. Hoje olhando esse material, concluí que a maior parte dele se danificou com o tempo. Deixei então esse projeto de lado e escrevi outro livro sobre técnicas da gravura em metal, baseado na minha trajetória artística e minhas experiências nesta área desde o início no Rio de Janeiro passando por Paris e posteriormente em Brasília onde vivo e trabalho atualmente (Sonhos, momentos, emoções: técnicas e gravuras, 2008). Por insistência dos meus amigos estou escrevendo um segundo livro, desta vez incluindo a história da gravura no Brasil.  Coloquei experiências técnicas desenvolvidas posteriormente e inclui dados sobre a minha trajetória como professora de gravura desde 1975, no Brasil e no exterior por onde passaram mais de 400 alunos até hoje, pois continuo dando aulas. O meu livro fala também da minha vida que, serve como aprendizado para outros artistas. Todos os episódios, as dificuldades que tive como gravadora, estão expostos ali. Todos os macetes que a maioria dos gravadores não conhecem porque poucos frequentaram um atelier de gravura no Brasil por 2 anos (Escolinha de Arte Augusto Rodrigues com o professor Orlando Dasilva) e em Paris, por 4 anos. Na Escola de Belas Artes de Paris frequentavam inúmeros alunos de várias partes do mundo que traziam para o convívio sua aprendizagem e sua experiência. No atelier do grande gravador Friedlaender, éramos poucos que tínhamos esta oportunidade muito especial. Ao retornar ao Brasil, percebi que, por ter tido o privilegio deste aprendizado na terra da gravura (França), tinha um compromisso moral de transmitir toda esta experiência a todos que se interessassem pela técnica. Não podia guardar isso só para mim. Era uma obrigação moral para com todos que não tiveram essa oportunidade.

Como foi que a gravura entrou em sua vida? Sabemos que você traz em seu sangue o DNA de uma família de artistas, os Campofiorito. Como foi a origem da gravura para você?

Eu comecei desenhando, junto com os jovens da minha família e fazendo “exposições” anuais no grande casarão onde morávamos para vender os nossos desenhos. A família inteira comprava tudo. Fui a única dos três que seguiu o caminho das artes. Prestei concurso para a ENBA (Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro), passei em 1º lugar em 1957, cursei três anos e tive que trancar a matrícula. Tendo me casado com um diplomata virei uma cigana. Vivemos na Suíça, Colômbia e voltei para Brasília com meus 03 filhos pequenos. Pensei inicialmente em terminar o Curso de Professorado de Desenho na ENBA. Conversando com uma grande amiga, e ex-colega na ENBA, Marina Colasanti, segui seu conselho e, passei a frequentar o atelier de Orlando Dasilva. Esta decisão, tomada após muita reflexão, ao desistir de terminar o curso superior, foi consequência da atração por uma técnica extremamente difícil que me permitiria desenvolver os dois lados da minha personalidade: o racional pela dificuldade técnica e o emocional, pelo menos no inicio do trabalho, que poderia se manifestar.   Porque a gravura é uma expressão artística que tem um lado exuberante, espontâneo e um lado racional. Eu tenho os dois dentro de mim. Como professora eu tenho um lado racional organizado e tenho o lado da explosão total. Eu preciso desenvolver os dois. Na gravura você convive com técnicas tão difíceis que para dominá-las, precisa exercê-las muito bem para ter algum resultado. E foi por essa dualidade, explosão criativa e racionalidade que me apaixonei.

“Arbres IV”, 1969, gravura em metal feita no período da Escola de Arte tendo Orlando Dasilva como professor.

E como foi a sua experiência de dois anos na Escola de Arte do Brasil tendo Orlando Dasilva como professor? Como era o processo de ensino dele?

Orlando Dasilva é o maior conhecedor de gravura do Brasil. Sou muito a grata a ele por toda a ajuda e ensinamento que me deu e sempre gosto de fazer essa declaração, pois as pessoas muitas vezes se esquecem de serem gratas. Foi crucial na minha vida para me tornar gravadora o apoio do Orlando Dasilva e da Marina Colasanti. Ali pude começar uma carreira de maneira livre e criativa. Toda essa emoção, inerente ao meu temperamento, explodia na gravura. Com ele aprendi as técnicas, sem que ele interferisse no processo criativo. Para ele, que tinha assessorado Friedlaender, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o que importava era a técnica e não só a imagem.

Leda, sua gravura é uma abstração da realidade captada. Poderia nos falar sobre isso.

Naquela época, a minha gravura já era a abstração da natureza, da realidade. Nos anos da Escola de Arte minha temática eram aqueles emaranhados de árvores em água forte. Foi um começo maravilhoso e não houve uma condução da minha liberdade de expressão o que me fez seguir adiante. Do Rio de Janeiro segui para Paris acompanhando meu marido.

Leda Watson e seu grande mestre em Paris, Johnny Friedlander

Como foi sua experiência no Atelier de Friedlaender quando você foi para Paris?

O processo de ensino do Friedlaender é completamente diferente do que poderíamos imaginar. Ele não “ensina“, como não ensinou no curso do Rio de Janeiro à frente da oficina do MAM. Em seu atelier de Paris, o aprendizado se dava através da convivência, aprendíamos por osmose. Ele ficava trabalhando com a sua assistente e nós íamos a sua sala apenas para imprimir, pois a prensa ali ficava. Ele fiscalizava tudo mas não dizia nada. Uma só vez em quatro anos, estando eu com dificuldade em uma técnica, ele decidiu me ajudar e permaneceu mais de uma hora me mostrando o caminho técnico correto para resolver o problema. Nós aprendíamos observando seu trabalho, vendo-o imprimir; era assim que se aprendia em seu atelier.

Sua obra foi influenciada pela obra do Friedlaender?

Não, pois quando você olha minhas obras  feitas ainda no Rio de Janeiro e o desdobramento delas no atelier do Friedlaender em Paris, perceberá que desde essa época eu já fazia a representação do cerrado. Inexplicavelmente, desde sempre – Rio de Janeiro, Paris e Brasília – a vegetação do cerrado estava presente. Sempre vinha à Brasília muito antes dela ser inaugurada, era apaixonada por esse lugar. Atravessávamos de jipe o lago Paranoá, ainda sem água, com meu primo Italo Campofiorito que trabalhava com o Niemeyer. Vinha sempre aqui, apaixonada, e convivi com Ana Maria Niemeyer, muito minha amiga naquela época e, posteriormente uma excelente galerista. Inconscientemente isso ficou registrado em minha memória afetiva e visual. Era apaixonada pela ideia de Brasília ser a capital do Brasil e me apaixonei por essa paisagem sem me dar conta. Apenas olhava aquilo tudo, o cerrado sofrido, as árvores nascendo tortas em meio àquela seca e depois, com a chuva, tudo crescendo no meio do verde. Acredito que isso causou um grande impacto visual em mim e quando fui fazer gravura com o Orlando Dasilva no Rio e continuei com o Friedlaender em Paris, vi que o que saia da minha imaginação eram, justamente essas imagens.  Eu conhecia Brasília mas não tinha ainda a consciência do quanto aquela vegetação do cerrado influenciaria minha obra.

E como foi o recebimento de sua gravura em Paris?

Foi ótimo e produzi bastante nesse período. Fiz minha primeira individual na Galeria Bernier. Vendi muito. O Friedlaender me aconselhava sempre sobre o caminho que deveria seguir e as pessoas que devia procurar. Me dizia que eu era uma gravadora e deveria expor numa galeria especializada em gravura e não em qualquer lugar. Posteriormente comecei, com a minha pasta de gravuras a visitar as galerias. Deixei algumas obras em consignação, algumas galerias nem me receberam, até que parei em frente a uma grande e importante galeria, a Romanet, e, meio tímida, resolvi entrar para tentar falar com o dono da galeria. A sua secretária me recebeu com simpatia, coisa rara para quem não havia marcado entrevista, talvez porque falasse bem o francês. Pediu, então, para que aguardasse 5 minutos enquanto mostrava minha pasta para o dono da galeria. Quando voltou, disse que o Sr. Romanet me receberia. Tive então a notícia de que ele teria gostado tanto do meu trabalho e considerado as gravuras tão boas que ele compraria todas as 50 gravuras que estavam na pasta. Foi um dia memorável em toda a minha vida, tamanha felicidade. Daí começou uma relação profissional maravilhosa com a Galeria Romanet que me permitiu ter meu trabalho mais apreciado. Recebi, então, o convite da Sociedade de Mulheres Bibliófilas (Société des Femmes Bibliophiles) , formada por russas que editavam um livro a cada dois anos, para ilustrar o próximo livro delas. Para se ter uma idéia do poder dessa Sociedade, o último artista convidado tinha sido Salvador Dalí. Queriam fazer uma nova edição com um gravador desconhecido e novo e se encantaram com o meu trabalho. Estudei o texto de um livro de Jules Laforgue recomendado por elas , fiz duas gravuras que foram aprovadas por unanimidade pela comissão de notáveis. Parecia um conto de fadas e me sentia a própria “gata borralheira“. O que elas curtiam era acompanhar o trabalho do artista por 2 anos em seu atelier. Infelizmente, meu marido logo depois foi removido para o Brasil e com isso precisei renunciar a esse projeto que teria me consagrado definitivamente como gravadora em Paris.  Tinha 3 filhos para cuidar e não teria como sobreviver sozinha em Paris. Tive medo. Mesmo assim por muitos anos, continuei vendendo minhas gravuras para os editores e trabalhando com algumas galerias. Vendi mais de 15 edições de gravuras e todas elas fazem parte hoje do acervo da Biblioteca Nacional de Paris. Mas você acha que alguém aqui no Brasil valoriza isso? Mais tarde Friedlaender fez uma carta de apresentação elogiando o meu trabalho, algo inédito, segundo ele, em toda a sua vida.  Ele disse: “Leda você foi a única pessoa para a qual escrevo essa carta, você faz uma excelente gravura”.

“É um prazer para mim responder ao pedido de Lêda Watson. Ela trabalhou em meu atelier durante três anos (outubro de 1970 ~ outubro de 1973). Ela foi uma das minhas alunas mais dotadas de espírito de invenção e criatividade. Ela dominava totalmente as técnicas da gravura e encontrou caminhos que prometem as maiores esperanças.”

Johnny Friedlaender Paris, 18 de novembro de 1975


Ainda em Paris, fui premiada em 1973, no Salão dos Artistas Franceses e convidada para receber a medalha no Grand Palais. Surpreendi o adido cultural da Embaixada do Brasil por não terem sido comunicados da minha premiação, pois, segundo eles isso não deveria acontecer. Fiquei muito emocionada em obter esse prêmio por meu próprio mérito artístico, sem ajuda ou influência de ninguém.

“A gravura é a multiplicidade da arte, é uma arte original que vale tanto quanto uma arte única mas é reproduzida para que todos tenham uma obra de arte a um preço acessível.”

Leda Watson


“Taches V”, 1975. Gravura em metal executada em Paris

O Friedlaender chegou a comentar com você sobre a experiência que ele teve no Rio durante a instalação do Atelier de Gravura do MAM?

Sim. Ele adorou todos os alunos mas ficava triste quando alguns deles não o citava em seu currículo  como professor . Elogiou muito Edith Behring, Piza, Rossini Perez.  Adorou a experiência e os gravadores brasileiros.

O conceito de reprodutividade da gravura. Como você vê a questão da reprodução da gravura enquanto múltiplo artístico? Suas gravuras em particular têm tiragens muito pequenas.

Tem todo um ritual. Existe uma lei universal onde devemos imprimir a gravura em metal até 99 exemplares, isso, dependendo da técnica senão seria menor. As demais técnicas, xilogravura ou serigrafia, não perdem em qualidade quando a tiragem é maior. Apesar do processo de “Acierage”, que é um banho de aço que permite que a chapa resista ao processo de grandes tiragens, em se tratando de gravura em metal ainda é recomendável que seja impressa em no máximo de 99 exemplares.

Mas qual a razão da gravura e da sua importância?  É a multiplicidade da arte, é uma arte original que vale tanto quanto uma arte única mas é reproduzida e todos têm oportunidade de adquirir uma obra de arte a um preço accessível. Essa é a idéia da gravura artística. Você faz, você imprime e divide sua arte com mais pessoas. É uma arte múltipla. A gravura é uma forma de arte generosa. Quando eu mesma imprimo toda a edição de uma gravura minha, faço em geral 30 exemplares pois é uma tarefa muito cansativa. Em Paris fiz algumas edições de 50 exemplares, mas no Brasil resolvi reduzir. Meu tempo ficou mais curto. 

“Momentos de paz”, gravura em metal da série Emoções que Lêda Watson publicou em Brasília, nos anos 80

Voltando de Paris, como foi o inicio de sua atividade de gravadora e o ensino da gravura em Brasília?

No princípio eu não pensava em criar um núcleo de gravura . Estava devendo edições aos galeristas em Paris. Tinha que produzir muito, imprimir e enviar as provas para eles escolherem e depois contratarem um impressor para realizar a edição na quantidade desejada. A dificuldade no início, foi montar o ateliêr pois meu marido e eu tínhamos um orçamento curto, ele ganhava pouco como diplomata na época. Consegui alugar uma sala na W3 Sul para montagem do atelier que ficou ótimo considerando a exiguidade do espaço.Fui, então, convidada em 1975, para dar um curso de extensão sobre gravura na UNB a convite dos professores Charles Mayer e Barbara Freitag, mulher do Embaixador Sergio Rouanet. A turma tinha 26 alunos e eu quase enlouqueci! Para ensinar gravura você deve ter uma turma de 5, 6 alunos no máximo. Todos aprenderam e ficaram apaixonados pela gravura. Em 1975 não havia professor de gravura na UNB e meu atelier era bem pequeno e não cabia aquele monte de alunos que queriam continuar a fazer gravura. Então eles foram alugando as salas ao lado do meu atelier e assim foi fundado pelos alunos o 1º Núcleo de Gravadores de Brasília. E começamos a trabalhar juntos.

Tínhamos na época uma grande empresa em São Paulo, a Topal, que nos fornecia todo o material. Eles simplesmente mandavam tudo o que eu queria, além de muita coisa que trouxe de Paris. O mais estranho disso tudo, foi que em 1979 fiz a transferência dos meus créditos da EBA que não havia terminado para a UNB e assim terminei meu curso com direito ao diploma de curso superior. O reitor da UNB me convidou então para ser professora da UNB para que eu pudesse passar a todos minha experiência acumulada de anos e anos em gravura. Mas fui vetada pela diretora do departamento e assim não dei aulas no UNB, deixando de oferecer meu trabalho e meu conhecimento gratuito para centenas de alunos durante 30 anos  durante os quais poderia ter atuado. O meu atelier foi criado em 1973 mas comecei a dar aulas em 1975 e durante todos esses anos, mais de quatrocentos alunos, em grupos de 5 ou 6, passaram por mim. Isso sem contar com os cursos que ministrei no exterior (Nicarágua, Costa Rica, Panamá , Perú e Venezuela).


“Vol de nuit”, gravura em metal de Lêda Watson impressa em Paris, 1972


Durante o período da ditadura você foi em algum momento pressionada por algum amigo a produzir uma gravura de conotação política ou social?

Eu sempre fui política. Minha família, de descendência européia , sempre pensou em política pois está no sangue. Desde jovem me interessava pelo assunto, tinha minha opinião. Só que o mundo evolui, tudo evolui e aquela posição não tem hoje mais sentido. Eu sempre pensei que o trabalho de um artista deve estar de acordo com os fatos que o cercam , mas isso não deve representar o mote principal, pelo risco de perder a força interior e autenticidade. O racional é importante na realização de uma obra de arte, mas sempre achei que o visceral é que é importante.  Se eu quiser fazer uma gravura racional, com todas as técnicas de desenho e gravura que aprendi, é só pegar o material e fazer. Mas não teria a força que tem a minha gravura, porque não viria de dentro de mim. Viria da cabeça e não do coração. A força de uma obra de arte não está, obrigatoriamente, em seu cunho político e social , mas sim na força e na qualidade estética que ela apresenta.

Eu respeito quem o faz, mas se eu fosse fazer isso, não iria corresponder a minha necessidade interior, eu iria violar meus princípios. Não ia fazer o que eu penso, o que vem de dentro de mim.  Quando terminou o regime militar fiz uma grande “Exposição no Varal”, desmistificando o papel da arte como algo distante das pessoas. Até então expúnhamos as obras em galerias e não penduradas num varal com pregadores de roupa. As pessoas pegavam as gravuras com as mãos, escolhiam, compravam, sem aquela distância do vidro, da moldura e da galeria. Foi um sucesso total  de vendas e de público. Repeti  recentemente, aliás, essa mesma experiência em  meu atelier na minha residência e foi igualmente um sucesso.


“Emoções IV – a conquista”, gravura em metal da Serie “Emoções”, impressa em Brasília

Alguma vez você teve vontade de voltar para o Rio de Janeiro?

Toda vez que algo acontecia na minha vida e pensava em sair daqui, parece que   “tramas espirituais” atuavam e eu acabava desistindo. Então pensei: vou parar de tentar voltar para o Rio de Janeiro e assumir de uma vez que sou brasiliense. Eu sentia um “chamado” aqui, não podia voltar. Tinha que sobreviver, tinha que trabalhar, já tinha passado num concurso público para me tornar professora de novo e então desisti de vez. A cidade tem alguma coisa que te prende, algo inexplicável. Eu adoro isso aqui, só estou brava por não ter mais chuva como antes!

Como é seu processo de criação?

Eu começo a fazer uma água forte, que é uma cera que se espalha pela placa, pego a ponta de aço e eu não sei o que vai acontecer. Eu vou passeando com a ponta, vai pra cá, vai pra lá, sem uma idéia pré-estabelecida, não sei o vai acontecer. Se aparecer uma figura feminina será mera casualidade. Os meus alunos descobrem passarinhos no meio daquele emaranhado e eu acho divertido. A primeira fase (etapa de criação) da minha gravura é totalmente visceral, eu não sei o que vai sair. Depois, evidentemente, sobre essa água forte usarei outros processos, pois uso muitas cores e vários recursos de impressão. Tinha pouco dinheiro para comprar placas e tive que criar minhas próprias técnicas de impressão  para poder fazer muitas cores numa mesma placa; eu mesma criei isso por pura necessidade. Não foi com o Friedlaender nem a Escola de Belas Artes. Após essa imagem inicial da primeira fase, tenho que pensar o que quero com essa gravura: quero relevo? Quero tantas cores? Enfim, vou separando tecnicamente as cores dentro das possibilidades técnicas usando a parte alta e a parte funda para conseguir muitas cores numa mesma placa.

De forma didática Lêda Watson exerce seu papel de artista mas também de professora explicando o processo das variadas técnicas da gravura em metal em seu ateliêr em Brasília.

Qual a relação hoje do mestre e aluno da época em que você fez gravura?

Todo mundo quer ser artista e hoje há muito facilidade para isso. Desde Duchamp a coisa começou a mudar. Ele fez uma brincadeira e foi gerando um caminho, que aliás, como disse Affonso Romano de Santana e Ferreira Gullar já deveria ter se esgotado há muito tempo. A transgressão existe e é importante, mas não deve ser eterna, mas sim para promover uma mudança e não para ser uma facilitação. Sou, algumas vezes, contra o abuso que essa coisa de arte contemporânea pode trazer. As artes plásticas falam por si só, não precisam de texto para sua compreensão, pois aí então estaríamos diante de uma obra de literatura. Existem grandes artistas contemporâneos muito bons que possuem uma grande bagagem por trás. Existe no entanto muita gente que não quer aprender uma técnica complicada como a gravura, por exemplo. Improvisam. Essas pessoas viram artistas às vezes do nada sem um investimento anterior. A arte banalizou, vulgarizou e deixou de ser algo estético e sim apenas conceitual. Há muitos anos não vou à Bienal de São Paulo. Não tenho interesse.

A xilogravura tem a mesma capacidade e amplitude de criação da gravura em metal, numa linguagem mais moderna e contemporânea?

Eu acho que a xilogravura apresenta caminhos de muitos recursos, embora tenha o limite do alto e baixo, dois níveis. Apesar disso artistas como Lívio Abramo descobriram texturas incríveis e não se limitaram ao entalhe em branco ou preto. Mas há um limite. Você pode fazer cores esplendorosas mas as texturas são difíceis. Vi uma exposição de xilo, do Kuniyoshi em Paris que me deixou completamente impressionada, passei mal de tanta emoção e deslumbre. Quem faz também uma xilos enormes e lindas é a Maria Bonomi. Uma vez fui a uma exposição dela e me encantei com sua simpatia e talento. 

O papel da crítica em relação a sua gravura? Precisam conhecer melhor a arte da gravura para se tornarem críticos?

Penso que há muito tempo não temos crítica de arte em Brasília. Há muitos anos atrás existia um crítico de arte do Correio Brasiliense chamado Hugo Aurea. Ele não me conhecia mas escrevia como grande conhecedor das técnicas de gravura. Você para criticar tem que conhecer. Surgiu recentemente o trabalho de curador, você acaba tendo bons artistas que conseguem fazer esse papel mas também outros menos capacitados atuando como críticos. Tive críticas muito boas de grandes profissionais do Brasil. Você conhece hoje bons críticos de arte no Brasil? A única que crítica que faço além da gravura é escrever sobre ela, nunca poderia ser curadora ou crítica de arte apesar de já ter sido convidada uma vez. Em relação ao papel da crítica, todas as que recebi, apreciei muito. A crítica do Lívio Abramo sobre a minha obra representou um grande momento em minha vida. Fui chamada por ele para fazer uma exposição no Uruguai sem nunca ter me visto antes, mas apenas porque conhecia meu trabalho e gostava  de minhas gravuras.

“Doce primavera”, gravura em metal de Lêda Watson, 1975

Pode se ensinar arte? Se tornar artista?

Tenho uma opinião formada sobre isso e inclusive já escrevi textos sobre o assunto. Todos nós nascemos com capacidade criativa. Fui professora primária no Rio de Janeiro e todos os alunos eram criativos, alguns mais, outros menos. À medida que vamos nos racionalizando, aprendendo a ler, escrever e opinar,  vamos nos condicionado a ter opiniões externas a nós , que não vem de nosso interior. As crianças são naturalmente criativas , mas os adultos tem uma auto censura muito grande e nem sempre conseguem criar. Eu inventei uma técnica baseada na respiração e concentração, onde o aluno, de olhos fechados, ao soltar o ar na expiração, vai traçando o desenho com um lápis macio e o resultado é surpreendente. A energia aparece na qualidade e na força do traço, e a pessoa vai adquirindo segurança em sua criação. O aluno fica se censurando o tempo todo, preocupado em fazer o que ele aprova, o que a sociedade aprova e não o que vem de dentro de si. Funciona mesmo!

Litogravura, serigrafia, xilogravura, gravura? Tantas técnicas… mas é tudo gravura?

Há um grande equívoco sobre isso. Esse é um problema do Brasil. Dei aula em vários países da América Latina e eles distinguem muito bem, o que é apenas uma estampa do que, de fato é uma gravura. Sabem perfeitamente o que é gravura. Aqui colocaram tudo num mesmo saco nivelando todas as técnicas como se fossem uma só e, o que é pior, usando a palavra” gravurista”, o que não é verdade. Somos gravadores. Sem a incisão, o entalho na matriz  é e será sempre apenas uma estampa.  Gravura mesmo só em metal ou xilogravura e ponto final.

JULIO REIS