Andre de Miranda comemora seus 40 anos como xilogravador

3 de Março de 2018
André de Miranda no ateliê de xilogravura logo no início de sua carreira em 1979

A xilogravura é meu alimento espiritual diário. É com ela  que me equilibro. Xilogravar pra mim é rasgar, cortar, desarraigar uma superfície que resiste. E quanto mais resiste mais decisivo será a marca deixada.”

                                                                                       André de Miranda

André de Miranda, um dos mais importantes gravadores do país, completa em 2018, 40 anos dedicados à arte da gravura. Para comemorar essa data, nos concedeu essa longa entrevista onde fala de sua carreira, seu aprendizado e seu amor incondicional à xilogravura.


André, como se deu o seu interesse pela gravura? Geralmente as pessoas primeiro se encantam com a pintura mas você acabou enveredando pelo caminho da xilo.

AM: É verdade. Mas eu me iniciei pela pintura, devia ter mais ou menos 15 para 16 anos.  Mas antes disso quero contar uma pequena história: nasci no bairro do Maracanã próximo à Quinta da Boa Vista onde meu pai tinha por hábito nos levar nos finais de semana, pois lá era o nosso verdadeiro quintal. Devia ter meus 5 ou 6 anos e  lembro que havia um grupo de pintores ao ar livre e isso nunca saiu de minha memória. Então, não queria brincar e sim ficar olhando os caras pintando.  Já adulto, fui descobrir que esse grupo pertencia a uma escola de pintura ao ar livre chamada Colméia, que ficava num prédio anexo do zoológico porém nunca me matriculei nessa escola. Aos doze anos, após sofrer um acidente com uma queimadura que afetou minha visão, o médico recomendou a meu pai que me matriculasse em alguma atividade onde pudesse exercitar minha criatividade e ai fui começar a estudar pintura em 1975 na Academia de Arte e Cultura Elzira Amábile no bairro da Usina sob a orientação da professora Genia Waisberg. E a partir daí nunca mais parei de me interessar por arte. 

André de Miranda em suas primeiras aulas no ateliê de pintura

Em 1976/1977 comecei a frequentar o atelier da pintora chilena Jemile Diban, em Copacabana. Também frequentava esse ateliê o pintor Jose Maria Dias da Cruz, que sempre me elogiava e gostava muito da minha plasticidade na pintura. Depois a Jemile foi para a Europa me presenteando com o seu cavalete e todo o material de pintura. Apresentou-me a artista Maria Cecília Castro Pinto. De início, Maria Cecília levava-me para pintar e estudar no Parque da Cidade e posteriormente, alugou uma casa à Rua Santa Alexandrina, nº 445 no bairro do Rio Comprido. Com o tempo, Cecilia alugou uma das salas para o gravador Ciro Fernandes que já era bem conhecido na época. Já devia estar com meus 18 anos e nem sabia o que era gravura! Ciro montou seu atelier na sala ao lado e recebia a visita de artistas como J.Borges, Teixeira Mendes, Tilde Canti, Samico, Anna Carolina de vez em quando, Marcelo Soares.  

“Gêmeos”, xilogravura de André de Miranda para o álbum “Horóscopo para os que estão vivos”, do poeta Thiago de Melo, 1981

Um dia o poeta Thiago de Melo encomendou ao Ciro um álbum chamado “Horóscopo para os que estão vivos”, editado com tipos móveis – ele tinha um prelo -. O Ciro tinha pressa em entregar o serviço e me perguntou se eu podia ajudá-lo. Deu-me uma goiva feita por ele mesmo – que tenho até hoje – e disse: André, corta aí. E assim fui fazendo uma ilustração atrás da outra sendo a primeira o signo de Gêmeos. Quando o poeta Thiago de Melo chegou, adorou tudo e fui fazendo uma atrás da outra; não parei mais e não quis mais saber da pintura.  Na época a Cecília não se incomodou por eu ajudá-lo, pois estava muito duro e ganharia alguns trocados. Ciro me abriu essa janela para o mundo da xilogravura pelo qual sou muito grato. 

"Jacarepaguá", xilogravura de 2006 de André de Miranda 

Em 1981 fiz minha primeira exposição individual das xilos e matrizes dos dois últimos anos na Galeria de Arte que a antiga biblioteca do Leblon possuía na Rua Dias Ferreira. Tive o apoio do Marcelo Soares que me deu o primeiro rolinho e do Raimundo Santa Helena, grande cordelista que me incentivou a continuar o trabalho.

 

“Forró”, xilogravura de André de Miranda, nos seus primeiros anos como artista xilogravador

Também pendurei muitas xilos no barbante na Feira de São Cristóvão, já vendendo a minha produção. E nunca mais parei. Não tenho mais essas matrizes, se perderam. Não existia naquela época por conta destes gravadores populares a preocupação na preservação das matrizes, registro de tiragem etc. Só mais tarde quando se tornaram artistas reconhecidos é que essa preocupação vai ocorrer. 


André de Miranda no Ateliê de Lídio Bandeira de Mello, onde recebeu aulas de desenho

Quais foram seus primeiros mestres na xilogravura?

AM: Não fiz Escola de Belas Artes ou cursos formais de gravura. Meu aprendizado foi diretamente assistindo os grandes artistas da época produzindo no ateliê. Quando eu fui ter aulas com o Ciro – ele disse que nunca me deu aula-, mas aprendi muito com ele. O Augusto Rodrigues que também frequentava o atelier, me deu muitas dicas. O Marcelo Soares, gravador hoje radicado em João Pessoa, me orientou e a Anna Carolina, isso já bem mais tarde, me ensinou muita coisa, em especial o amor à xilogravura, a limpeza no trabalho e na impressão da xilo em cores, afinal ela foi aluna do José Altino. Bebi muito destas fontes e visitando outros ateliês fui aprendendo e aprimorando minha técnica. 

“É com a xilo que construo, falo, grito e me equilibro. É nesta técnica milenar que encontro soluções para meu espírito inquieto.”

André de Miranda

Morei no bairro de Santa Teresa e me tornei amigo do Newton Cavalcanti que morava lá. O meu sonho era ter aulas com ele e lhe mostrava minhas xilos e pedia para ele me dar aulas. Ele sempre dizia:  “eu não vou lhe dar aulas porque você sabe e vai se perder se eu for te ensinar mais alguma coisa”. Aí tentei com a Isa Aderne que também me disse que tudo que eu precisava saber, eu já sabia, não havia nada a ensinar.  Bom, se era verdade ou não eu não sei.  O próprio Samico quando estava no Rio via meus trabalhos e dava orientações mas objetivamente não tive um professor formal de gravura. 


“Outono em Santa Teresa”, xilogravura em duas cores de André de Miranda

Houve a influência destes artistas na sua obra?

AM: Com cada artista eu aprendi algo. Não tive um mestre único no sentido exato da palavra, mas vários com quem convivi ou não. Com a Ana Carolina aprendi o amor à xilogravura, o respeito à madeira. Ela contava que uma vez expulsou do curso uma aluna que disse “que aquelas matrizes estavam boas era para fazer lenha para o churrasco”. Com o Iberê Camargo, por exemplo, para o qual levava meus trabalhos para ele ver, aprendi a disciplina na produção e impressão da obra. Ele dizia sem meias palavras: “Isso está bom ou então isso não presta, rasga e joga fora”. Então de cada um desses mestres e até daqueles com quem não convivi como Adir Botelho ou o próprio “Picasso”, vamos sendo influenciados pelas suas obras. O Goeldi e próprio Lívio Abramo, que foi uma paixão muito grande. Com o Lídio Bandeira de Melo tive algumas aulas de desenho, enquanto que com o Augusto Rodrigues, aprendi como organizar um portifolio, a mapoteca, a limpeza do desenho, a linha. Quer dizer, cada um foi contribuindo de alguma forma para a minha formação artística. Mais tarde fiz gravura em metal com o Marcelo Frazão e Heloisa Pires Ferreira. 

“Cidade – homenagem à Lívio Abramo” – xilogravura de 2007, que recebeu o Prêmio de Aquisição da 12º Concurso Internacional de Gravura El Caliu – Girona – Espanha

Como foi seu contato com o Lívio Abramo?

AM: Ele frequentava o SESC da Tijuca, era muito amigo da Anna Carolina. Mas na época eu era muito novo, precisava trabalhar para ter meu dinheiro. Trabalhei por mais de 20 anos como designer de móveis.  Cheguei a parar a gravura por 4 anos e resolvei chutar o balde e largar tudo, quando então me mudei para o Mato Grosso do Sul. Então ia de vez em quando lá e em duas oportunidades tive contato direto com ele, que depois me presenteou com uma gravura e também uma goiva que guardo até hoje. Interessante que sempre me identifiquei mais com a obra do Livio Abramo do que a do Goeldi, apesar de críticos de arte considerarem meu trabalho expressionista, porém, sou mais ligado à obra do Lívio do que o expressionismo alemão do Goeldi. Gosto muito das texturas, do lirismo que o Lívio tem em sua obra.

“O ato criativo é uma experiência direta na sensibilidade individual, única e insubstituível na obra de arte.”

                                                                                                           André de Miranda

Em 2000, por ocasião do centenário de nascimento do Livio Abramo, produzi uma gravura em sua homenagem, feita com a própria goiva que ele me presentou. Na época houve uma Bienal de Gravura na Espanha e mandei a gravura que fiz em sua homenagem e acabei sendo premiado. Foi uma grande alegria. De lá para cá costumo dizer que continuo aprendendo. Mesmo após 40 anos dedicados à xilogravura, precisamos de uma vida inteira para aprender e compreender todos os seus nuances. Estou todo dia aprendendo. 


ANDRÉ DE MIRANDA:“Sonho Azul”, 2016, xilogravura em 3 cores

Sua obra é muito coesa. Seu traço é marcante e pessoal. Se pegarmos um trabalho seu antigo ou novo, sabemos que se trata do mesmo artista. Como você chegou a essa linearidade? Em algum momento, surgiram dúvidas se esse era o caminho correto a seguir?

AM: Tenho até hoje dúvidas. A goiva e o buril lhe dão a possibilidade de ter a sua própria marca. Porque você grava e segura o instrumento de uma maneira diferente de outro artista. Como o  Darel e outros mestres e eles consequentemente como outros, esse conhecimento vai sendo passado de uma geração à outra. E aí você acaba conhecendo como era a maneira de imprimir utilizada por Goeldi ou a forma como o Lívio preparava a matriz e assim por diante. Esse conhecimento advindo das experiências de outros gravadores vão enriquecendo o seu próprio conhecimento que é transportado para a sua gravura.

                      “A influência é inevitável. Nenhum artista vive no vazio.”

                                                                                                          André de Miranda

Como você vê o tradicionalismo na gravura e a vanguarda da gravura, a obra contemporânea e a diversidade dos materiais utilizados como matrizes atualmente?

AM: Eu acho maravilhoso esses processos híbridos e alternativos onde a gravura possa surgir. Gravura é aquilo que é gravado, como pintura é pintura. Vamos dar nomes aos bois. São processos gráficos. Já vi exposições de impressões feitas com plotter que eram chamadas de gravura e não é. Você pode juntar as técnicas, mas quando uma das técnicas ultrapassa 30% da área do trabalho, é esta técnica que deve ser nomeada, é a que se sobressai. Essa tendência dos novos artistas gravarem em novos formatos tem nos mostrado coisas muito boas da mesma forma como tem muitas xilogravuras feitas tradicionalmente porém muito ruins. Insisto, precisamos dar nome correto às técnicas. Uma gravura feita em MDF é uma gravura porque houve incisão, eu mesmo já usei esse suporte, mas não posso chamar de  xilogravura porque MDF não é madeira. Vamos nomear corretamente como por exemplo “gravura em relevo, impressa em matriz de MDF”. E ai você vê por aí “gravura digital”, mas não existe essa nomenclatura. O próprio inventor da litografia, Salois Senenfelder (1771 – 1834), dizia que litografia não era gravura! 


ANDRE DE MIRANDA: “Anoitecer”, 2014, xilogravura em 3 cores

E como você vê o aprendizado da gravura em cursos regulares?

AM: Os artistas que saem do curso conseguem aprender a técnica em um ano, mas daí a você produzir uma boa xilogravura, são necessários muitos anos. É muito difícil, exige esforço, paciência e persistência. A própria Anna Letycia, com que convivi algumas vezes me dizia que “a técnica da xilogravura era a mais difícil das técnicas, pois as pessoas confundiam a arte da xilogravura com produção de carimbo”. Trabalhar em preto e branco já é difícil e você ainda ter que dar uma expressão a essas duas cores usando um suporte tão primitivo. É o mais difícil dos suportes quando você quer buscar um resultado plástico e expressivo.

Com  tempo e acumulo de experiência, você começou a dar aulas. Nos conte um pouco sobre seu  papel como professor de xilogravura.

AM: Foi tudo muito de repente. Quando ia participar das exposições, as pessoas ficavam me perguntando como se fazia, como poderiam aprender e aí foram surgindo convites para fazer oficinas por várias cidades do Brasil. Sou muito rigoroso, aprendi com o Iberê Camargo. Uma vez ele me contou que pegou o pincel de uma aluna e o jogou pela janela, pois o pincel não prestava. Sou muito criticado por alguns alunos pelo rigor, inclusive muitos abandonaram o curso. Só ficam aqueles que realmente querem se tornar gravadores. Pude ajudar o desenvolvimento de novos artistas como a Lucie Scherer no Acre, o Carlos Henrique Pereira em Palmas, Tocantins e muitos outros excelentes gravadores por todo o Brasil. Morei de 1993 a 1997 na cidade de Três Lagoas, MS, onde ministrei oficinas de xilogravura em diversas cidades e na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Fui professor de desenho no SENAI Construção Civil Rio de Janeiro em 1999. Fui membro do Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul e residi na cidade de Curitiba – PR, de 2004 a abril de 2008. Faço sempre palestras sobre gravura por todo este país, como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, Goiás, Recife, João Pessoa, Rio Branco etc. 

 

ANDRE DE MIRANDA: “Luar de Agosto”, 2013, xilogravura em 5 cores

E como você vê a questão da influência do professor sobre a obra do aluno?

AM: Acho válido copiar os grandes mestres para aprimorar a técnica aprendida no atelier. Mas o aluno precisa seguir sozinho o seu caminho e aos poucos descobrindo o seu estilo próprio sem a influência do mestre, que até pode ocorrer no início, mas depois desaparece. Quando comecei a fazer algumas colagens com xilo, uma colega me disse que estava plagiando a obra dela, mas se você for analisar as obras hoje passados tantos anos, verá que são completamente diferentes, até porque a colagem com pedaços de jornais ou partituras é algo que vem desde Picasso. Até você descobrir sua poética, o quê desperta teu interesse plasticamente, é complicado. Influências você sempre terá. Eu sofro influências de todos, desde Picasso a Ciro Fernandes, passando por Lívio Abramo e Matisse, porque de quem você gosta e admira,  você acaba pegando um pouquinho de cada uma dessas fontes. Mas quando vejo a minha série xilocidade, não conheço nenhum outro artista que tenha feito algo parecido. Já a minha série bichos posso ter recebido influências de obras do Grassmann, Roberto Magalhães ou Ciro Fernandes, mas são obras minhas. Fui também aluno de guache do Frank Shaeffer e minha obra não tem qualquer influência de seu trabalho.

O Siron Franco que gosta muito do meu trabalho e de gravura, sempre que nos encontramos ele me conta uma história: o Antonio Poteiro, se tornou pintor por causa dele. Ele produzia aqueles potes, mas queria pintar e não tinha material. Então o Siron deu tela, tinta e material para ele pintar. A primeira tela ele presenteou ao Siron. 

ANDRE DE MIRANDA: "Sem titulo", pintura guache da série de exposições realizadas no Centro Cultural Petrobrás no anos 90

Como você analisa a crítica de arte? Ela ainda existe?

AM: Ela não existe mais. Tivemos críticos importantes: Frederico Morais, Wilson Coutinho, Marc Bercovitch, inclusive em todos os jornais como o próprio O Globo. O caderno B do Jornal do Brasil tinha toda semana. O Frederico de Morais chegou a escrever uma época uma coluna de crítica de artes visuais  mas acabou tudo, como também não há mais galerias. Os curadores tomaram o lugar dos críticos nessa área. Sinto muita falta disso.  Walmir Ayala era muito criticado por que cobrava para fazer uma crítica sobre um determinado artista. Mas era justo! Afinal o artista pagava e estaria nos jornais no dia seguinte. Fiz uma exposição de pintura no Centro Cultural Petrobrás em 1988. Era um estilo naif muito interessante que unia elementos afros com elementos primitivos, como sereias e orixás.  Fiquei tão apaixonado pelo tema que na época cheguei a abrir uma loja de artigos religiosos com meu ateliê funcionando na sobreloja. Obtive muito sucesso, inclusive chegando a participar como entrevistado do Programa Sem Censura.  Nessa época o Walmir Ayala foi à exposição e depois escreveu uma crítica no Jornal O Globo dizendo que a minha pintura era xilo! Nessa época, já estava me interessando pela xilo lá com o Ciro. Mas hoje, quem vai fazer a crítica do meu trabalho? Um curador que sabe bem menos do que eu? Esse trabalho acabou indo naturalmente para os colecionadores como o Paulo Herkenhoff, que é maravilhoso, mas não é mais como era antigamente quando os críticos frequentavam os ateliers dos artistas gravadores para conhecerem os processos de produção, as técnicas utilizadas. Frequentávamos muitas galerias de arte como a Bonino, a Trevo. A Dora Basílio gostava muito dessas minhas pinturas e me incentivava a continuar pois eu teria muito sucesso. E tínhamos galerias comerciais que esses críticos frequentavam e de vez em quando aparecia alguém bom e interessado por gravura.

Então essa troca de experiências entre os artistas com os críticos não existe mais. O artista hoje acaba ficando nas mãos dos curadores, que pouco conhecem a sua obra e também dependente dos espaços disponibilizados pelos centros culturais, administrados por funcionários públicos que infelizmente não estão preparados para fazer uma seleção correta dos artistas. 




ANDRE DE MIRANDA: “Cidade 18 – 11",  xilogravura impressa s/anúncio de classificado de jornal de lançamentos de novos prédios, 2009

Você disse em uma entrevista feita durante uma exposição sua no Paraná que a gravura sempre foi a sua amante. Pode explicar melhor?

AM: É. Eu fui casado 3 vezes e sempre priorizei a gravura; a arte de uma maneira geral. A minha última companheira e ex aluna, por quem sou apaixonado até hoje, a Marisa Hul,  que aprendeu gravura comigo e tem uma xilogravura fabulosa, confidenciou para um amiga em comum que me largou porque a troquei pela xilo; não saia de casa para fazer nada, só queria fazer xilo e que me casei com a xilo, rs… A xilo para mim é a minha grande amante, eu me casei com a xilo mesmo. Mas na verdade nunca larguei a pintura, então não sei com quem sou realmente casado, se com a xilo ou com a pintura. No momento estou produzindo pouco xilo em razão do meu espaço físico que diminuiu depois da mudança de local do ateliê.

ANDRE DE MIRANDA: “Paisagem Fragmentada 2”, 2013, xilogravura em 2 cores 


PAISAGENS FRAGMENTADAS

“Venho tentando aprender com a natureza, entender o caráter caprichoso da luz, que nunca se repete, perceber a arquitetura que não se constrói, perseguindo o desafio que há entre o branco e o preto, orquestrando meu exercício plástico, imaginando em derramadas texturas, linhas e aguadas dispersas entre um trabalho e outro em preto e branco.

Assim são estas paisagens – passagens, vivas, regidas pela imprevisibilidade, grafismo de ondas pretas e brancas movendo-se a cada passante dos cinzas aguados.

Não são paisagens, são passagens.”

                                                                                                          André  de Miranda

 


ANDRE DE MIRANDA: “Era uma vez a minha rua – 3” xilogravura impressa s/anuncio de classificado de jornal de lançamentos de novos prédios, 2006


André,  a partir de 2003 você criou uma importante série de xilogravuras cujo processo criativo durou cerca de 10 anos, a famosa série “Xilocidade – memória urbana gravada”. Poderia nos falar um pouco mais sobre ela?

AM: Através desta série, continuo me apropriando sobre o descaso com a memória da arquitetura em muitas cidades brasileiras. São xilogravuras impressas sobre folhas de jornal (offset) retiradas dos cadernos dos classificados. Em anúncios de novos prédios, imprimo elementos da arquitetura antiga antes presentes nesses mesmos terrenos em que agora prevalece o novo em sacrifício do antigo. Sem nenhum critério e já há muito tempo, estes antigos casarões – alguns tombados – estão sendo vendidos e cedendo lugar a modernos e esqueléticos prédios. Bairros do Rio de Janeiro como Santa Teresa, Catete, Tijuca e Centro, ainda tentam manter seus antigos casarões do início do século XIX. Muitas destas maravilhosas construções foram transformadas em pensões na década de 30, quando em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro ainda não havia a especulação imobiliária. Neles residiam jovens estudantes e famílias inteiras que alugavam seus quartos. Muitos imigrantes que aqui chegavam, subiam suas escadarias e encontravam abrigo nestes sobrados onde estava registrada sua história. Encontrei nesta forma de impressão a maneira mais poética de chamar a atenção para este problema urbano. Fica aqui estampada minha reflexão. A série Xilocidade durou 10 anos, quando então passei para a série Paisagens Fragmentadas.

  


ANDRE DE MIRANDA: “Pichula”, xilogravura que recebeu o Prêmio Aquisitivo no 9º Concurso Internacional de Gravura El Caliu – Girona – Espanha – 2004)

 

Qual a premiação que você mais se sentiu orgulhoso em receber durante essa trajetória artística?

AM: O que considero mais significativo foi o prêmio que recebi com uma gravura da série dos Bichos chamada “Pichula” para uma Bienal na Espanha.  E o prêmio estava vinculado a uma edição de 100 exemplares assinada como 2ª edição. Eles mandaram o papel e eu imprimi e destruí a matriz quando a edição estava completa, como manda as regras internacionais de impressão da gravura clássica. Então eles produziram 100 álbuns com essa gravura incluída e doaram para os 100 mais importantes museus da Europa, dentre eles o Louvre. O Museu Oscar Niemeyer tem essa gravura em seu acervo de exposição permanente junto com os demais exemplares da série Bichos. Essa gravura ajudou muito a projetar minha carreira como artista xilogravador.

E as suas colagens, quando você começou?

AM: Eu sempre gostei de colagens. Elas surgiram quando eu percebi que tinha um grande número de gravuras mal impressas e ai comecei a brincar. Como não tinha espaço para trabalhar pois o atelier estava em obra, comecei a fazer as colagens com essas xilos. Depois eu descobri nos guardados de minha mãe uma quantidade muito grande de partituras para piano que foram de minha tia, da década de 40. O estado delas estava muito ruins, se partindo. Então,  dei essa nova roupagem, transformando-as em colagens junto com as xilogravuras. Fiz centenas e o resultado me agradou muito. Já foram expostas no Museu de Arte do MS e recentemente no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo no Rio.


ANDRE DE MIRANDA: “JAZZ NOTURNO”, colagem de xilos com partituras musicais

Muitos artistas não são bons administradores da própria carreira ou não conseguem organizar a obra e a sua produção. Como você lida com isso, que conselho daria para os novos artistas?

AM: Quando trabalhei na Galeria Performance no shopping Cassino Atlântico eu visitava o  atelier do Scliar no Leblon para ele assinar sempre os atestados de autenticidade das obras que a galeria vendia e também de sua filial em Brasilia. Era tudo muito organizado. Hoje poucos artistas fazem isso. Eu quando vendo minhas gravuras, elas vão acompanhadas de certificado de autenticidade, ficha técnica, assinatura registrada em cartório. Se os artistas novos não fazem, aí é um problema deles, mas eu tenho esse cuidado. Até hoje acredito que já tenha feito em torno de mil gravuras além das pinturas e colagens. Todas estão registradas em número, com data, título, número de impressão e técnica empregada. 



André de Miranda em seu ateliê no Rio de Janeiro

André, nesse ano em que você completa 40 anos de gravura, haverá alguma exposição ou retrospectiva de sua carreira? Pode nos adiantar alguma novidade?

AM: Sim, nesses 40 anos de gravura, já fiz 43 individuais pelo país inteiro além de muitas participações em bienais internacionais de gravura. Todo esse prazer e amor que a gravura me proporciona será coroado com uma grande exposição retrospectiva no Museu de Arte de Blumenau em Santa Catarina no mês de setembro. Na mostra estarão não só as obras de todas as séries que desenvolvi durante todo esses anos como também, desenhos de estudos e algumas matrizes.


JULIO REIS

 

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