José Hernández e o peso do tempo

8 de Setembro de 2021
José Hernández (1944-2013), pintor e gravador espanhol

A intenção criativa de José Hernández situa-se, consciente ou inconscientemente, entre as formas e os conteúdos; entre a análise e a natureza transcendental da criação e da interpretação: por isso, uma chapa isolada de José Hernández só adquire seu verdadeiro sentido quando a situamos novamente dentro do conjunto de sua obra e de sua trajetória.

O princípio condutor pelo qual se guia este gravador poderia formular-se assim: não há forma sem conteúdo. A lógica de seu sistema de pensamento é muito mais aparente que real, e o que resulta verdadeiramente apaixonante de investigar em sua obra é o estudo dos elementos que a compõem. Uma obra em que encontramos valores antitéticos, como tempo e espaço ou "plenitude e forma", mas também valores profundos e superficiais, valores de fusão e de fragmentação. Todos estes conceitos servem como "reagentes" que nos permitem apresentarmos, diante da obra, uma série de questões relacionadas com os problemas que o artista teve de resolver para realizá-la; conceitos que nos levam a intelectualizar o processo de criação: a obra, independentemente das intenções do autor, só pode ser compreendida como uma resposta a problemas de ordem geral ou específica; a intenção artística se identifica com as "estratégias" que foram utilizadas para responder a esses problemas, e essas estratégias são as que conferem à obra a sua unidade. Daí a seguinte hipótese fundamental: a intenção criadora outorga ao mesmo tempo a obra, necessariamente entrelaçados, seu sentido e sua unidade. No entanto, a análise da obra pode orientar em duas direções, que parecem não estar relacionadas entre si: uma análise formal, que somente leva em consideração as características do estilo; e um estudo do conteúdo sobre a forma de análise iconográfica. Em qualquer dos casos, a análise não tem o porquê surgir da obra, é algo inerente.


JOSÉ HERNÁNDEZ: "Guardián de espectros", 1975, gravura em metal, buril e ponta seca. Coleção Julio Reis, RJ.

A análise iconográfica se apoia em uma base histórica e permite estabelecer laços entre a obra e a visão de mundo. Esse deciframento nos leva a determinar o conteúdo temático da obra em si e facilita sua compreensão.

A análise histórica permite comprovar como a obra não adquire sentido, tanto em sua forma como em seu conteúdo, até que não a situe novamente na tradição. Forma e conteúdo estão submetidos a um princípio conceitual, pelo qual quanto mais se aproxima ao estado de equilíbrio a correspondência entre a "ideia" e a "forma", melhor se desprenderá da obra o conteúdo.  

É o que Erwin Panofsky em O Significado nas Artes Visuais (*) considera advindo "da mentalidade de uma convicção religiosa ou filosófica, inconscientemente individualizada pelas qualidades próprias de uma personalidade e condensada em uma obra única”.

Um artista como Hernández cria formas a partir de uma representação interior.  Isto se aproxima à teoria medieval, segundo a qual na obra de arte não existe mais que a projeção de uma imagem interior na matéria, e cruza com Alberto Durero, com quem José Hernandez tem mais um ponto de convergência.

A arte de Hernandez não ignora nem imita a Natureza, e sim a supera, a aperfeiçoa e a transpõe graças à imaginação, que resulta numa visão nova ou renovada.

A partir do momento em que admitimos e esse é o nosso caso, que existe uma harmonia pré estabelecida entre o sujeito e o objeto, assistimos, diante da obra, a um ir e vir incessante que nos leva das ideias ao modelo e vice-versa.

O problema reside em conhecer qual é o papel que desempenham, respectivamente, o objeto e o sujeito na criação artística, ou, se preferir, como conciliar a representação intelectual e a coisa em si.

Nas gravuras de José Hernandez encontramos, sem sombra de dúvida, essa arte maneirista, esse classicismo barroco e também literário, porém as teorias, ainda constituem uma parte da situação artística de uma época, não são a verdade, são somente um aspecto de um problema mais geral, o das relações entre a arte e o conceito: qual o significado da obra de arte?

A estética de José Hernandez, - e, sem dúvida alguma, sua ética - nasce da observação crítica e lúcida, e, portanto, pessimista, da realidade, na medida em que o inscreve na modernidade, pois são muitos os que compartilham com ele, neste fim de século, a mesma visão pessimista do mundo: Cioran e Samuel Beckett, na literatura, ou, nas artes plásticas, Claude Verlinde e Jean-Marie Poumey-rol na França, Francis Bacon na Inglaterra. Horst Janssen na Alemanha e, embora seja verdade que Hernandes tem uma visão do mundo menos terrível, Becksinski na Polônia, etc...; a lista é longa e sombria.


JOSÉ HERNÁNDEZ: "Dama afligida", 1974, gravura em metal, buril e ponta seca. Coleção Julio Reis, RJ.

Todos eles nos introduzem num universo que se mesclam a decadência, a corrupção, o crime, a miséria, a podridão e a morte. E em sua obra gráfica José Hernandez não hesita em enfatizar em como os excessos e os desmandos de qualquer exercício abusivo de poder, seja burguês, religioso ou político, levam à deterioração social.

Recentemente, Anselmo Alvares Afonso assinalava, acertadamente, até que ponto as estruturas do gravador estavam “perfeitamente definidas e meticulosamente detalhadas, porém submetidas ao impreciso claro escuro do sonho” (**).

A obra de Hernandez se situa em um dos momentos mais angustiantes e talvez mais decisivos da história do Ocidente, na confluência de dois séculos, num mundo que não deixa de se autodestruir. Ele, mas que nenhum outro artista, soube plasmar em sua obra – primeiro com uma visão inquieta, que apenas alcançava apaziguar a obscura consciência de um pressentimento, e, depois, agora, com uma visão plenamente lúcida – o testemunho de um homem de seu tempo para quem o porvir está longe de lançar a luz.  

Em suas primeiras gravuras, Hernandez representava preferencialmente personagens, às vezes superpostos, porém, pouco a pouco, as referências espaciais se impuseram, e os traços adquiriram liberdade e expressividade. As gravuras de Hernandez desembocam diretamente no fantástico, e ignoram o lado obscuro, fonte de inspiração para a maioria dos artistas de todos os tempos. Sua arte se tem firmado melhor no insólito e, mais concretamente, nos “espaços inquietos”: aqueles que o Homem parece haver abandonado, porém que tem sido estruturados por ele, e que se tem convertido em espaços desertos ocupados pelo vazio. Um vazio gerador de angustia, onde o silêncio e a solidão nos remetem a um mundo morto, “o vazio, essa distância universal de todo o todo”, dizia Jean-Paul Sartre. Junto ao fantástico que transpõe ou inverte as formas do mundo conhecido, encontramos em Hernandez o fantástico que cria seres sem relação alguma com o mundo visível. O artista soube construir um universo em que o inconsciente, o não formulado, o impreciso, se desenvolvem com uma liberdade e uma fecundidade que a arte antiga, tão estreitamente vinculada ao conhecido, não poderia possuir.

Muitas vezes, o fantástico nasce em Hernández da transposição do real para o irreal. O artista sugere a sensação de vazio a que se sucedem rapidamente a de ansiedade e logo a de espera. Hernández possui a arte de fixar a espera, de imobilizá-la, de fazê-la infinita, de deixá-la em suspenso, carregando sua duração de inquietude e do peso do tempo. ***

 

Yves Leroux

Academia de Bellas Artes



* -Alianza Editorial, Madrid, 1991.

** En Artes $ Métiers du Livre n.158 nov/Dec 1989, p.79 

*** Versão livre do espanhol para o português escrita por Millene Barros Guimarães de Sousa - Licenciada em Letras Português/Espanhol) 

Maiores informações sobre o artista: https://www.jose-hernandez.com/principal.php

E também vídeos do artista:

http://www.youtube.com/watch?v=Zxd3AxIPFoI&feature=share
http://vimeo.com/95498771
http://www.youtube.com/watch?v=R9ToBWk7MKU
https://www.youtube.com/watch?v=dN4O9axAmjw