Périgo busca no escuro a transparência purista

14 de Setembro de 2021
MARCIO PÉRIGO: "Até ontem em Atenas. Nas mãos do malabarista.", 1987, gravura em metal, água-tinta, buril e roulette.

Antonio Gonçalves Filho*

A gravura de Marcio Périgo tem algo de transparência do movimento purista que exige do espectador a mesma atenção solicitada, por exemplo, diante dos trabalhos de Robert Delaunay e Francis Picabia. O mesmo princípio de arte “vers le crystal”, ou seja, cristalina aos olhos de quem observa o fenômeno, transforma o trabalho de Périgo num apelo à ordem. É o que se pode ver em todas as 80 gravuras expostas a partir de hoje no Gabinete Raquel Arnaud. São trabalhos realizados desde 1972 até este ano, impressos com o apoio de uma bolsa concedida pela Fundação Vitae que, de certa forma, retomam a máxima purista, ou seja, o invariável conceito de que linha e forma são elementos de uma linguagem imutável de uma cultura a outra. 

Livre de associações secundárias, as disciplinadas composições de Périgo retomam a discussão do “objet type”- aparentemente banal em sua ausência de relações – num ponto que ela parecia ter sido superada pelo cubismo analítico ou até mesmo pela fúria purista do orfismo de Kupka e do próprio Delaunay. Do mesmo modo que o orfismo perseguia a abstração como meta, Périgo diz que não procura a representação ao eleger como modelo um objeto trivial como uma garrafa. Não existe mais a fragmentação cubista em Périgo nem a simples obsessão formal que acabou transformando o purismo numa etapa superada da arte contemporânea. 

Meticuloso, Périgo busca a “memória afetiva” desse objeto aparentemente banal. Seu trabalho é solitário e feito com os olhos cegos de Tirésias prestidigitador. Não no sentido figurado, mas no coração das trevas. Seu mais comum hábito é passear pelo estúdio com os olhos fechados, tentando reconhecer em objetos a sua própria história. A “passion” de Jeanneret volta com força neste mergulho no escuro. Como se sabe, o purista Jeanneret achava que o artista pode captar intuitivamente a ordem dentro da desordem (o que hoje parece uma revolução para os meninos dos fractais e repórteres científicos como James Gleick, autor de “Caos”). E, mais que isso, Jeanneret tinha certeza que os artistas poderiam descobrir algo além da superfície dos objetos, impossível de ser desvendado pela ciência. 

Périgo não tentou ir tão longe, mas revela que esta busca começou, coincidentemente, na longa noite caótica do autoritarismo militar. Frequentando o atelier de Evandro Jardim em 1972, ele aprendeu a lidar com o buril num momento em que o Brasil mexia com o fuzil. “Naquele tempo em que todo mundo cobrava de você que colocasse figuras humanas na tela ou no papel, eu gravava objetos. Isso tem uma explicação simples, nada metafórica. Obrigado a me isolar no atelier, fui criando uma intimidade com os objetos que eu não tinha com as pessoas”, diz. Périgo havia escolhido o caminho oposto dos renascentistas que viam no corpo humano o próprio significado da ordem perseguida por esses bípedes inteligentes que devoram comida congelada e tomam Coca-Cola. 

Mas de alguma maneira, o homem estava presente através dos objetos que criou”, observa Périgo diante da gravura “Reflexões sobre a bandeira”, um trabalho de 1974, da chamada fase heroica do gravador. O tempo passou e a memória de Périgo foi recuando até a Grécia antiga. Há dois anos uma ânfora apareceu sobre o papel ferida por roulette e buril, num jogo expressionista de luz e sombras. Neste trabalho quase arqueológico dispensava as metáforas e significados, estava em busca da própria essência da ânfora”, diz, timidamente, não sem esconder sua procura de um funcionalismo humanista dentro desse sistema construído sobre o tríptico da harmonia, da precisão e da simplicidade, definido por Christopher Green como a essência dos “objets type”. 

“A técnica, por isso, é muito importante. Foi uma sorte ter conhecido Evandro e frequentado seu atelier”, reconhece. Na época tinha grande dificuldade de desenhar. A gravura seria a arte e ele apenas o técnico, imaginou. O tempo provou que Périgo conseguiu dela um resultado mais profundo, o de penetrar no núcleo do próprio objeto, transformando o ato de gravar num gesto tênue e evasivo de aceitação do “caos aparente”, título, aliás, da individual no Gabinete de Arte Raquel Arnaud. Curiosamente essa desarticulação não gerou uma estrutura ambígua. Périgo aceita a ordem proveniente dessa desordem e continua sua caminhada dentro do escuro labirinto que é seu atelier. Suas gravuras mais recentes são escuras como a noite. Mas transparentes como cristal. 


* Antonio Gonçalves Filho é atualmente repórter especial de cultura do jornal O Estado de São Paulo e crítico de arte. Texto publicado na “Folha de São Paulo”, na coluna “Artes Plásticas” da seção ”Ilustrada”, pág. F6, em 12 de dezembro de 1989.