Em 1981, o BANERJ, Banco do Estado do Rio de Janeiro publicou um importante álbum artístico com texto do pesquisador, intelectual e historiador da arte Clarival do Prado Valladares (1918-1983), sobre a pintora aquarelista Anna Vasco, que viveu na cidade do Rio de Janeiro. Seu talento e sua obra é um importante testemunho deste gênero de pintura que ainda carece de muitos estudos por parte dos historiadores da arte.

Clarival do Prado Valladares (1918-1983)
Sobre as aquarelas de ANNA VASCO
É tradição do BANERJ-Banco do Estado do Rio de Janeiro S. A.
enriquecer, sempre que for possível, a sua pinacoteca com assuntos atinentes à
paisagem fluminense e carioca. Em 1965, data em que se comemorava o
tetracentenário da cidade de Estácio de Sá, Emiliano Di Cavalcanti fez para o
saguão da sede do BANERJ, naquela época BEG - Banco do Estado da Guanabara S.A.
- o monumental políptico em óleo sobre tela, de quatro metros de altura por
onze de largura, criado em quatro painéis alusivos à história e alma do Rio de
Janeiro.

ANNA VASCO: "Praia de Botafogo", aquarela sobre papel, 1901. Coleção FUNARJ.
Para as paredes da sobreloja, Emeric pintou a série
"Crônica do Rio de Janeiro", em seis grandes telas no total de quase
dezoito metros lineares de base. Para perenizar aquela data, através da
pintura, não consta que se tenha feito nada comparável, por nenhuma outra
entidade. Ao mesmo tempo, José Paulo Moreira da Fonseca, então da assessoria
jurídica do BEG, foi liberado para pesquisar, selecionar e adquirir grande
parte da atual pinacoteca BANERJ, hoje com trabalhos de Portinari, Guignard, Djanira,
Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Bonadei, Goeldi, Santa Rosa, Sigaud,
Visconti, Cavalleiro, Lucio Cardoso. Pancetti, para lembrar alguns nomes
brasileiros mais conhecidos de entre os mortos. Dos estrangeiros, ativos no Rio
de Janeiro, a Pinacoteca BANERJ inclui, em seu acervo verdadeiramente museológico,
as cromolitrografias de Victor Frond, desenvolvidas na França pelos melhores gravadores,
e a desafiante vista de todo o Rio, "a vôo de pássaro", impressa
cerca de 1872, de Emil Bauch.

ANNA VASCO: "Paineiras", aquarela sobre papel, 1898. Coleção FUNARJ.
Entretanto, uma certa tela, de paisagem marinha vista de
Niterói, do Saco de São Francisco, tomando os mortos graníticos até a Fortaleza
de Santa Cruz, assinada por Benno Treidler (Berlim, Al. 1857-Rio 1931) -
desperta grande atenção nesta exposição que o Banco do Estado do Rio de Janeiro
organizou para comemorar o centenário de nascimento da aquarelista ANNA VASCO,
discipula do paisagista alemão. Não há como desconhecer a presença estilística
do mestre sobre a aluna. Treidler pintou em tela, madeira e em aquarela,
sobretudo por ter sido formado pela Academia de Belas Artes de Berlim, aluno de
Ferdinand Lechner e de Cristian Wilberg. Nascido em Berlim em 1867, veio para o
Brasil em 1885. Foi professor, para alunos particulares, em pintura a aquarela
e sua habilitação se fazia em todos os gêneros, fosse paisagem ou retratos de “figuras
da sociedade carioca". Faleceu, no Rio, em 1931. Sete anos antes da morte
de VASCO. O excelente preambulo biográfico sobre sua ilustre genitora escrito
por Vasco Mariz, consagrado autor de numerosos livros de história e crítica da
música brasileira, dá-nos completa informação da origem, formação, período de
produção artística, premiações nos Salões Nacionais da Escola de Belas Artes e,
tanto quanto lhe foi possível, a coleta da obra remanescente.
Há cerca de oito anos tive conhecimento de alguns quadros de
ANNA VASCO pertencente à família Vasco Mariz e, por interesse de documentação
de aspectos do Rio de Janeiro do fim do século passado e começo do presente,
fotografei seis deles. Sempre me impressionaram como pintura ágil, colorismo
vivo e inteligente, correta perspectiva panorâmica, bem como as de ambiente
interior, com figura. Enfim, verdadeira pintura em aquarela. Examinando o
itinerário percorrido ao tempo de locais pouco habitados, especialmente as
vistas tomadas do alto do morro do Leme, Cantagalo, a vasta praia de Copacabana
quando era como a natureza a fez, paisagem da Lagoa Rodrigo de Freitas, das
Paineiras, de Botafogo e de um bucólico moinho d'água encravado na mata de
Petrópolis, percebe-se o artista que vai em busca do tema, enfrentando
distâncias e clima. ANNA VASCO percorre a orla praieira do Rio antigo, descobre
vistas entre mar e montanhas, entende-se com a mutação de folhagens outonais.

ANNA VASCO: "Praia de Botafogo perto do Morro da Viúva", aquarela sobre papel, 1901. Coleção FUNARJ.
O gênero aquarela não levaria ANNA VASCO aos maiores prêmios
praticamente exclusivos da pintura de cavalete sobre tela e, na maior parte,
trabalhados em ateliê até mesmo na feitura de paisagens. ANNA VASCO poderia,
por isso, ser considerada uma pintora de plein air, valendo-se do seu
meio de produção - a aquarela - para fixar a natureza em seu aspecto e cores
fugazes. Pouco importa a sua limitada produção. Mais importa o nível, a
qualidade e o significado que atingiu. Por tais motivos Laudelino Freire
considerou-a com acatamento, a ponto de reproduzir no seu livro, hoje clássico
na história da pintura brasileira, cerca de seis das suas aquarelas. A
iniciativa desta publicação, patrocinada pelo Banco do Estado do Rio de
Janeiro, traduz o interesse já tradicional do BANERJ em enriquecer seu acervo
com assuntos e aspectos, históricos e atuais, do Rio de Janeiro.

ANNA VASCO: "Panorama da Baia de Guanabara", aquarela sobre papel, 1900. Coleção FUNARJ.
ANNA
VASCO (1881-1938)
Anna da Cunha Vasco era filha do casal Anna e José Maria da
Cunha Vasco. Tiveram quatro filhos: Maria, Anna, José e Adélia, todos cariocas.
Anna era conhecida por seus familiares e amigos como Anninha e assim algumas
vezes assinou suas aquarelas. As duas moças tiveram decididos pendores
artisticos: tanto Maria quanto Anna estudaram pintura com seriedade e Anna
chegou a ser também uma boa pianista.

ANNA VASCO: "Retrato de Adélia Cunha Vasco", aquarela sobre papel, 1901. Coleção FUNARJ.
O ambiente familiar era propicio para a arte, pois José
Maria da Cunha Vasco era um próspero homem de negócios, chegando a presidente
da Companhia Confiança Industrial, que possuía grande fábrica de tecidos no
início do século. No entanto, ele era mais conhecido por Vasco apenas, nos
meios intelectuais e artísticos do Rio de então. Possuía uma biblioteca
considerável, com numerosos livros em vários idiomas, a qual infelizmente se
dispersou após a morte de sua esposa, em 1936. O velho Cunha Vasco era alto e
careca, de esmerada educação e amigo de vários artistas ilustres, daqui e
d'além mar. Os irmãos Bernardelli, Bordalo Pinheiro, Malhoa, Helios lhe
dedicaram obras, também dispersas. Um notável retrato de Cunha Vasco, em estilo
"caravaggiesco", foi vendido inexplicavelmente pelo genro, em 1939,
após a morte de Anna Vasco. O lar dos Cunha Vasco em Botafogo e sua casa de veraneio
nas Paineiras eram frequentados com assiduidade por artistas e o industrial
agia como verdadeiro mecenas. O mobiliário da residência de Anna Vasco, na Rua
General Dionísio nº 24, em Botafogo, abrangia peças de alto valor, também
vendidas após a sua morte. Destarte, os filhos da família Cunha Vasco cresceram
em ambiente luxuoso e cercados de obras de arte, fato que certamente estimulou
as jovens Maria e Anna a iniciarem seus estudos artísticos. Seu mestre de
pintura foi Benno Treidler, o bem conhecido pintor alemão radicado no Brasil e
que deixou obra, inclusive no acervo do BANERJ. A aquarela foi o meio de
expressão artística que mais as atraiu, possivelmente por sugestão médica ou do
próprio professor. Com os antecedentes de Adélia, devia ser evitada a convivência
com a tinta a óleo. São conhecidas obras de Anna Vasco apenas de pequena faixa
de tempo, ou seja, de pouco mais de dez anos: 1897 a 1908. Nascida a 25 de
março de 1881, Anna já demonstrava razoável maestria da aquarela aos 16 anos de
idade e, aos vinte anos, é indiscutível seu domínio do estilo, ao lado de
precoce maturidade. Os anais da Escola de Belas Artes testemunham a concessão
de três prêmios quase sucessivos: 1905, 1907 e 1908 - duas medalhas de prata e uma de bronze. Supõe-se
que por volta de 1909 interrompeu sua atividade, pois teve de dar assistência
constante a sua irmã caçula Adélia, gravemente doente. Em 1911 seguia para a Suíça
com a enferma, e também Maria, instalando-se em sanatório em Leysin, perto de
Lausanne. Em 1914 lá faleceu Adélia. Sua irmã Maria casara-se com um médico que
atendia a enferma, Dr. Joseph Mamie. No início da Grande Guerra, regressaram
todos ao Brasil, inclusive o médico suíço. Esse triste intermédio parece haver
esfriado o interesse de Anna Vasco pela pintura, embora se conheçam algumas
aquarelas com paisagens de neve, datadas de Leysin. Pouco depois, o velho Cunha
Vasco caiu também seriamente doente e veio a falecer a 21 de junho de 1918.
Dois anos depois Anna casou-se com Joaquim José Domingues Mariz, português
amigo de seu pai, tendo dele um único filho, Vasco Mariz.

ANNA VASCO: "Vista do Morro do Cantagalo tomada do Leme", aquarela sobre papel, 1905. Coleção FUNARJ.
Infelizmente, seu marido não tinha pendores artísticos e
portanto não deve tê-la estimulado a pintar. Conservou porem quase até o fim da
vida o gosto pela música e pelo piano, que soube incutir em seu filho. Vasco
Mariz, diplomata de carreira, for cantor de câmara e é autor de numerosos
livros sobre música brasileira. Essa mesma tradição artística da família Cunha
Vasco ficou também registrada em um dos filhos de sua irmã Maria, que aliás
passou o resto de seus dias na Suíça. O único de seus filhos nascido no Rio de
Janeiro, Paul Mamie, é um bom pintor e gravador, membro da Escola de Paris,
onde habita, há meio século. Foi aluno de Léger e André Lhote e vive
normalmente de sua arte (óleos e gravuras). Em 1978, fez uma exposição
individual em Tel Aviv, a convite do primo Vasco, atual embaixador do Brasil em
Israel. Resta acrescentar que uma das
netas de Anna Vasco, também chamada Anna (Anna Thereza Mariz Gudiño), é
restauradora de arte, especializada no período colonial, havendo feito cursos
em Quito, Equador, onde seu pai representou o Brasil, e faz parte da equipe de
restauração do Museu Histórico Nacional.

ANNA VASCO: "Vista de Copacabana", aquarela sobre papel, 1907. Coleção FUNARJ.
Anna Vasco voltou à Europa mais duas vezes e passou o resto
de seus dias sempre em Botafogo, na Rua General Dionísio nº 24, velha
residência da família, hoje derrubada. Faleceu a 1º de novembro de 1938, com 57
anos de idade, após longa doença hepática. Era uma mulher alta e esguia, com
tez muito branca, cabelos e olhos castanhos, expressão suave. Sua irmã Maria
era pequenina saindo à mãe, mas Anna Vasco tinha a constituição do pai, físico
que transmitiu também a seu único filho e a sua neta Stella Mariz, médica
cirurgiã. Anna Vasco era uma figura doce, de temperamento reservado e frágil
saúde. Lia muito e manejava o francês com fluência. Embora seu marido fosse
homem de boa instrução (havia sido seminarista em Portugal), não possuía
sensibilidade artística. Cultivava apenas a oratória e foi um dos líderes da
comunidade portuguesa no Rio de Janeiro até 1969, quando faleceu no Rio. Foi
presidente da Sociedade de Beneficência Portuguesa desta capital e um dos
diretores do Jockey Clube Brasileiro.
No período em que desenvolveu seu trabalho, Anna Vasco fazia
frequentes excursões com a irmã e uma governanta ao Leme e a Copacabana, cujo
desenvolvimento urbano era ainda insignificante. Focalizou também a artista
vários ângulos da Praia de Botafogo e da Lagoa Rodrigo de Freitas, além de
aspectos das Paineiras e Petrópolis, locais de veraneio. Retratos da irmã
Adélia e de uma empregada da família atestam outro aspecto de sua mestria na
aquarela. Embora não existisse na época, no Rio de Janeiro, o trabalho
pormenorizado dos críticos de arte, tanto Anna Vasco quanto Maria Vasco foram
citadas com alguma frequência. Laudelino Freire em sua "História da Arte
no Brasil", 4º volume, 1916, não só menciona e ressalta os trabalhos de
Anna Vasco, mas também reproduz diversas obras em preto-e-branco, que na
presente publicação fazemos a cores. Na época foi feita uma edição de
cartões-postais do Rio com as aquarelas de Anna Vasco. Dela restam
relativamente poucas obras, uma vintena apenas, embora certamente outras ainda
possam ser identificadas em consequência desta publicação, que comemora o seu
centenário (1881-1981).