A disciplina e os compromissos com o ensino que acompanham a técnica da gravura fazem dela um verdadeiro celeiro de propostas conceituais e pesquisas estéticas algumas vezes desprezadas pelo olhar apressado. A gravura é uma técnica intimista que exige tempo e dedicação; a beleza de suas imagens revela-se lentamente, como um pequeno universo que aos poucos nos invade e seduz.
Após a atividade pioneira de Carlos Oswald, a gravura moderna surge na década de 20, através da via expressionista, com as obras de Lasar Segall e, posteriormente, de Oswaldo Goeldi. Segall sempre pautou seu tema em torno da figura humana. Sempre comprometido com o drama da existência humana, realizou imagens contundentes e de grande força trágica. Goeldi, por outro lado, invadiu a angústia intrínseca do ser humano. A solidão, a noite, os rejeitados, os animais entoam uma estranha canção nostálgica e natural. Em meio ao trópico, ao delírio, à exuberância, Goeldi faz do exercício da xilogravura uma revelação dos aspectos sombrios do ser humano.
Nos anos 30, uma época de grande turbulência política, tanto nacional quanto internacional, a gravura caracteriza-se como principal técnica para os artistas interessados na veiculação de imagens denunciadoras da opressão.
Ao contrário dos pintores, os artistas gravadores não abandonaram suas relações com a ilustração. A grande maioria das imagens produzidas pela gravura tem como tema o homem, o seu tempo, a sua luta, a sua vida. Por essa ligação com a política e com a literatura, a gravura sempre trabalhou como uma espécie de síntese entre a palavra e a imagem. Num país sem tradição visual como o Brasil, a gravura foi e é de extrema importância: ela aproxima a literatura das artes plásticas, ela recusa essa espécie de pedantismo pseudo-intelectualizado que faz da arte prisioneira das teorias filosóficas e a recoloca na vida diária e cotidiana das pessoas. A gravura fala da gravura, fala da arte, mas não se envergonha de falar sobre o seu país, sobre o homem, sobre a realidade. A gravura é a arte da luta.
A presença de artistas estrangeiros, em especial da alemã Kate Kollwitz, acaba por definir o perfil estético e conceitual da gravura moderna brasileira. Destaca-se nesse momento Lívio Abramo, em especial com a série Espanha, realizada entre 1936 e 1939, e que sintetiza a formação desse artista que soube reunir e criar imagens de grande contundência aliando-as a um ritmo construtivo de profundo rigor e beleza. Em Abramo não existem concessões: a simplicidade de suas composições é o caminho para revelar uma obra de grande densidade e sofisticação, em especial na xilogravura.
Com o agravamento da situação política (ascensão do nazi-fascismo na Europa e a implantação do Estado Novo entre nós), a arte moderna acentua seus componentes políticos. É o momento do surgimento de Portinari, síntese dessa relação.
A explosão da Segunda Guerra Mundial fez chegar ao Brasil diversos artistas que aqui buscavam refúgio das perseguições raciais e políticas. No âmbito da gravura destaca-se o nome de Axl Lescoschek que realizou inúmeras ilustrações, conforme anota Roberto Pontual (em texto publicado no site de gravura brasileira em maio de 2001), “xilogravuras de pequena dimensão onde se fundem expressionismo, surrealismo e realismo, e nas quais se pode encontrar curioso paralelo com as gravuras que acompanham os nossos livretos de cordel” (muito difundido no norte e nordeste, são pequenas estórias publicadas em papéis simples, sendo a capa ilustrada com xilogravuras – cotidiano, lendas, política, folclore, são alguns dos temas trabalhados). Nesta época surgem nomes de destaque ainda hoje na arte brasileira: Fayga Ostrower, Edith Behring, Renina Katz, Almir Mavignier e Ivan Serpa.
Sobre a gravura brasileira dos anos 40, Renina Katz sintetizou em depoimento a Roberto Pontual (jornal do Brasil, 23/12/77): “Os anos 40 levam muito em conta as artes gráficas. A pintura e a escultura ainda prevaleciam como representantes da grande arte (…). A gravura não tinha prestígio bastante. Artistas de peso como Goeldi, Lívio Abramo e Carlos Oswald não sensibilizavam o público e os colecionadores. A coragem dos mestres gravadores em insistir na formação de uma geração, em época tão hostil, pode ser considerada ato de bravura e de fé.” Cita-se aqui, ainda, a presença no Brasil entre 1942 e 1947, de Maria Helena Vieira da Silva. Em torno dela passou-se a reunir um grupo de artistas que acabaria por lançar as bases da abstração entre nós.
A década de 40, marcada pela guerra, constituiu-se numa espécie de laboratório de formação dos grandes acontecimentos artísticos que caracterizaram a década seguinte e que ainda hoje marca o mais rico período da arte moderna no Brasil. A forte influência expressionista no Rio Grande do Sul justifica a ação de Carlos Scliar e Iberê Camargo, artistas maiores na arte brasileira. Também o paranaense Poty Lazzarotto, com imagens da vida urbana cotidiana acrescida de um certo lirismo e que ministrou cursos de gravura em diversas capitais do Brasil, ajudando assim a expandir as ações da técnica.
Com o final da Segunda Grande Guerra, as vanguardas abstratas retomam seu lugar de destaque no cenário artístico. No Brasil, a burguesia dá início a um processo de modernização do circuito artístico. A criação dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro é fundamental nesse processo. Através deles e da Bienal de São Paulo, cuja inauguração em 1951 reuniu obras que sintetizam todo o movimento modernista, deu-se início a grande disputa que pautou a década de 50: os movimentos abstracionistas versus a arte realista, de caráter político e social. Nesse embate a gravura teve um importante papel. O artista gravador perseguia a profissionalização e desenvolvia trabalhos junto à imprensa, à propaganda, ao mercado editorial. Os custos inerentes à técnica faziam dele um ser mais preocupado com aspectos cotidianos do que com discussões que seduziam adeptos do concretismo, quase todos pintores ou escultores. A gravura é uma técnica artesanal; é um trabalho complexo. Para ser um gravador é indispensável dominar todo o processo, que envolve várias etapas e nenhuma pode ser eliminada. Em outras palavras: não pode haver um gravador aficcionado, gravador de “domingos”, que ocasionalmente realize umas gravuras em suas horas livres. Pelas próprias imposições da técnica, o gravador está obrigado a profissionalizar-se ou, pelo menos, a dedicar-se ao trabalho durante períodos longos e contínuos.
O mundo que vivia a excitação provocada pelo final da guerra também enfrentava a realidade da Guerra Fria entre “as nações democráticas e os países da Cortina de Ferro”, conforme frisou Churchill em 1948. Surge a bomba atômica. Na defesa da paz, diversos artistas organizaram-se em defesa da vida. No Brasil, os gravadores fiéis às suas tradições e às suas origens expressionistas criaram obras de grande qualidade estética, pautadas pelo rigor da técnica do desenho e permeadas de humanismo, retratando tanto valores universais quanto situações do cotidiano do trabalhador brasileiro. O objetivo era valorizar os aspectos nacionalistas, democratizar o acesso à informações artísticas e conscientizar a população sobre os perigos de um mundo dominado por um sistema econômico que, em nome de uma suposta modernidade, mantinha dois terços da população do planeta na mais ampla miséria. A síntese dessa filosofia foi a criação dos Clubes de Gravura de Bagé e Porto Alegre, que se espalharam por todo o país. Diversos artistas utilizavam-se da gravura para desenvolver um amplo trabalho cujo resultado ultrapassava os limites estreitos do meio artístico. Sob a liderança de Carlos Scliar, recém chegado da Europa, os clubes de gravura formam um instrumento eficaz da ação e divulgação da arte no Brasil. Nome como os de Glauco Rodrigues, Danúbio Gonçalves, Glênio Bianchetti, no Rio Grande do Sul, e Renina Katz em São Paulo, tornaram-se conhecidos nacionalmente graças à eficácia das suas ações.
Durante a década de 50, o Rio de Janeiro destacou-se como principal centro gerador da produção de gravura em nosso país. A presença de Oswald Goeldi, Iberê Camargo e Lívio Abramo na então capital federal serviu como fator aglutinador. Diversos gravadores vieram para temporadas de estudos no Rio.
É importante notar que, a partir dos anos 50, a gravura de origem expressionista, originária do sul e sudeste, passa a dialogar com a produção nordestina, de forte influência popular, em especial as xilogravuras de literatura de cordel. Destaca-se Gilvan Samico por sua capacidade de sintetizar o espírito de construção modernista com a cultura tradicional nordestina. Suas gravuras constituem um dos mais significativos exemplos da arte brasileira, sua produção é atemporal e recusa fronteiras. Ela mergulha na mística, na simbologia, na religiosidade popular. Cada gravura de Samico é uma demonstração da capacidade da arte de comentar o universal sem abandonar o individual.
Na Segunda metade da década de 50, a produção de gravura em São Paulo passou a se destacar, graças a Lívio Abramo, Renina Katz e Marcelo Grassmann. Este último, com uma obra de profunda dramaticidade, povoada por homens e animais que atuam como verdadeiros arquétipos das forças antagônicas, da Vida e da Morte. Nesse momento ainda, a gravura amplia suas ações: além dos compromissos com a ilustração, com a denúncia, com o papel social da arte, ela passa a buscar uma integração com a arquitetura, com a ambientação, com o espaço de convívio. Esse é o caso de Maria Bonomi que desenvolveu na xilogravura imagens de grandes dimensões de extraordinária beleza que se destacam no cenário da arte moderna do Brasil.
A valorização da gravura brasileira nos anos 50 deve-se principalmente à Fayga Ostrower, pioneira da abstração. À precisão técnica, Fayga sempre soube aliar uma profunda compreensão do espaço moderno. Suas manchas de cor articula-se para a criação de um discurso extremamente sofisticado onde as formas dialogam orientadas por uma sólida base teórica.
O ateliê de Gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro marca o momento áureo da gravura brasileira: final da década de 50 e início dos anos 60. Johnny Friedlander, que já havia sido professor de Arthur Luiz Piza, Flávio Shiró, Edith Behring e Sérvulo Esmeraldo em Paris, transfere-se para o Rio de Janeiro. Foi a primeira experiência de oficina planejada para a gravura e é graças a ela que a gravura em metal atinge sua maturidade, equiparando-se em nível técnico e experimental com a xilogravura, cujo principal centro passa a ser o Estúdio Gravura, comandado por Abramo e Bonomi em São Paulo. No Rio, Rossini Perez, Roberto De Lamonica e Anna Letycia destacam-se como jovens professores.
Com a influência da Pop Art no Brasil a gravura passa a merecer destaque ainda maior. As imagens impressas constituem elemento fundamental para o conceito Pop. O destaque nesse momento é Anna Bella Geiger, aluna de Fayga Ostrower, que dá continuidade às pesquisas e mergulha numa fase orgânica para, posteriormente, dentro dos postulados de superação do movimento neoconcretista, fazer da sua ação resultado da experimentação baseada no conceito e não na prática artesanal. Ana Bella soube dessacralizar a gravura e a sua influência é ainda visível hoje nos jovens gravadores do Rio de Janeiro.
Nesse momento, a litografia, técnica usual para impressão de rótulos comerciais durante o século XX, e a serigrafia, ideal para estamparia, passam a adquirir a aura artística graças ao trabalho do serígrafo Dionísio Del Santo e aos trabalhos de Darel Valença com a litografia, técnica que iria desenvolver-se em São Paulo com a presença de Octávio Pereira.
Para alguns artistas, somente a xilo e o metal constituem técnicas de gravura, já que as matrizes são entalhadas e os sulcos causados pelas goivas, pela ponta-seca ou pela ação de ácidos corrosivos fazem com que a impressão se dê através do negativo e da inversão. Tanto a litografia quanto o silk-screen e mais ainda, a monotipia são, na verdade, grafias sobre o suporte.
Nos anos 70, os jovens artistas direcionavam suas pesquisas para a descoberta de suportes não tradicionais. As técnicas de reprodução foram incorporadas ao mercado de arte, interessado tão somente em editar imagens de artistas consagrados, viabilizando a sua aquisição por um preço mais acessível. Num país sem tradição deu-se o domínio da malandragem: imagens de baixa qualidade e sem nenhum valor artístico passaram a seduzir uma pequena burguesia enriquecida interessada em adquirir somente as assinaturas. Uma grande parte da produção de gravura desse período nada mais é que cópia mal feita de imagens pictóricas. Os verdadeiros artistas gravadores refugiam-se em pequenos núcleos de resistência e se dedicam ao ensino da técnica para as novas gerações. É o caso de Evandro Carlos Jardim em São Paulo e de Anna Letycia no Rio de Janeiro, que determinaram os pilares da nova produção da gravura surgida no final da década de 70 e início da de 80.
Nos anos 80 a valorização da ações artesanais fez da gravura uma importante técnica de veiculação de imagens. Já a partir da década de 90, a produção da gravura foi variada e se espalhou por todo o país.