As aquarelas de Anna Vasco (1881-1938)

22 de Março de 2022
ANNA VASCO: "Pedra do Leme", aquarela sobre papel, 1906. Coleção Funarj.

Em 1981, o BANERJ, Banco do Estado do Rio de Janeiro publicou um importante álbum artístico com texto do pesquisador, intelectual e historiador da arte Clarival do Prado Valladares (1918-1983), sobre a pintora aquarelista Anna Vasco, que viveu na cidade do Rio de Janeiro. Seu talento e sua obra é um importante testemunho deste gênero de pintura que ainda carece de muitos estudos por parte dos historiadores da arte.                       



Clarival do Prado Valladares (1918-1983)


Sobre as aquarelas de ANNA VASCO


É tradição do BANERJ-Banco do Estado do Rio de Janeiro S. A. enriquecer, sempre que for possível, a sua pinacoteca com assuntos atinentes à paisagem fluminense e carioca. Em 1965, data em que se comemorava o tetracentenário da cidade de Estácio de Sá, Emiliano Di Cavalcanti fez para o saguão da sede do BANERJ, naquela época BEG - Banco do Estado da Guanabara S.A. - o monumental políptico em óleo sobre tela, de quatro metros de altura por onze de largura, criado em quatro painéis alusivos à história e alma do Rio de Janeiro.



ANNA VASCO: "Praia de Botafogo", aquarela sobre papel, 1901. Coleção FUNARJ.

Para as paredes da sobreloja, Emeric pintou a série "Crônica do Rio de Janeiro", em seis grandes telas no total de quase dezoito metros lineares de base. Para perenizar aquela data, através da pintura, não consta que se tenha feito nada comparável, por nenhuma outra entidade. Ao mesmo tempo, José Paulo Moreira da Fonseca, então da assessoria jurídica do BEG, foi liberado para pesquisar, selecionar e adquirir grande parte da atual pinacoteca BANERJ, hoje com trabalhos de Portinari, Guignard, Djanira, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Bonadei, Goeldi, Santa Rosa, Sigaud, Visconti, Cavalleiro, Lucio Cardoso. Pancetti, para lembrar alguns nomes brasileiros mais conhecidos de entre os mortos. Dos estrangeiros, ativos no Rio de Janeiro, a Pinacoteca BANERJ inclui, em seu acervo verdadeiramente museológico, as cromolitrografias de Victor Frond, desenvolvidas na França pelos melhores gravadores, e a desafiante vista de todo o Rio, "a vôo de pássaro", impressa cerca de 1872, de Emil Bauch.

ANNA VASCO: "Paineiras", aquarela sobre papel, 1898. Coleção FUNARJ.

Entretanto, uma certa tela, de paisagem marinha vista de Niterói, do Saco de São Francisco, tomando os mortos graníticos até a Fortaleza de Santa Cruz, assinada por Benno Treidler (Berlim, Al. 1857-Rio 1931) - desperta grande atenção nesta exposição que o Banco do Estado do Rio de Janeiro organizou para comemorar o centenário de nascimento da aquarelista ANNA VASCO, discipula do paisagista alemão. Não há como desconhecer a presença estilística do mestre sobre a aluna. Treidler pintou em tela, madeira e em aquarela, sobretudo por ter sido formado pela Academia de Belas Artes de Berlim, aluno de Ferdinand Lechner e de Cristian Wilberg. Nascido em Berlim em 1867, veio para o Brasil em 1885. Foi professor, para alunos particulares, em pintura a aquarela e sua habilitação se fazia em todos os gêneros, fosse paisagem ou retratos de “figuras da sociedade carioca". Faleceu, no Rio, em 1931. Sete anos antes da morte de VASCO. O excelente preambulo biográfico sobre sua ilustre genitora escrito por Vasco Mariz, consagrado autor de numerosos livros de história e crítica da música brasileira, dá-nos completa informação da origem, formação, período de produção artística, premiações nos Salões Nacionais da Escola de Belas Artes e, tanto quanto lhe foi possível, a coleta da obra remanescente.

Há cerca de oito anos tive conhecimento de alguns quadros de ANNA VASCO pertencente à família Vasco Mariz e, por interesse de documentação de aspectos do Rio de Janeiro do fim do século passado e começo do presente, fotografei seis deles. Sempre me impressionaram como pintura ágil, colorismo vivo e inteligente, correta perspectiva panorâmica, bem como as de ambiente interior, com figura. Enfim, verdadeira pintura em aquarela. Examinando o itinerário percorrido ao tempo de locais pouco habitados, especialmente as vistas tomadas do alto do morro do Leme, Cantagalo, a vasta praia de Copacabana quando era como a natureza a fez, paisagem da Lagoa Rodrigo de Freitas, das Paineiras, de Botafogo e de um bucólico moinho d'água encravado na mata de Petrópolis, percebe-se o artista que vai em busca do tema, enfrentando distâncias e clima. ANNA VASCO percorre a orla praieira do Rio antigo, descobre vistas entre mar e montanhas, entende-se com a mutação de folhagens outonais.

ANNA VASCO: "Praia de Botafogo perto do Morro da Viúva", aquarela sobre papel, 1901. Coleção FUNARJ.

O gênero aquarela não levaria ANNA VASCO aos maiores prêmios praticamente exclusivos da pintura de cavalete sobre tela e, na maior parte, trabalhados em ateliê até mesmo na feitura de paisagens. ANNA VASCO poderia, por isso, ser considerada uma pintora de plein air, valendo-se do seu meio de produção - a aquarela - para fixar a natureza em seu aspecto e cores fugazes. Pouco importa a sua limitada produção. Mais importa o nível, a qualidade e o significado que atingiu. Por tais motivos Laudelino Freire considerou-a com acatamento, a ponto de reproduzir no seu livro, hoje clássico na história da pintura brasileira, cerca de seis das suas aquarelas. A iniciativa desta publicação, patrocinada pelo Banco do Estado do Rio de Janeiro, traduz o interesse já tradicional do BANERJ em enriquecer seu acervo com assuntos e aspectos, históricos e atuais, do Rio de Janeiro.


 ANNA VASCO: "Panorama da Baia de Guanabara", aquarela sobre papel, 1900. Coleção FUNARJ.


ANNA VASCO (1881-1938)

Anna da Cunha Vasco era filha do casal Anna e José Maria da Cunha Vasco. Tiveram quatro filhos: Maria, Anna, José e Adélia, todos cariocas. Anna era conhecida por seus familiares e amigos como Anninha e assim algumas vezes assinou suas aquarelas. As duas moças tiveram decididos pendores artisticos: tanto Maria quanto Anna estudaram pintura com seriedade e Anna chegou a ser também uma boa pianista.



ANNA VASCO: "Retrato de Adélia Cunha Vasco", aquarela sobre papel, 1901. Coleção FUNARJ.

O ambiente familiar era propicio para a arte, pois José Maria da Cunha Vasco era um próspero homem de negócios, chegando a presidente da Companhia Confiança Industrial, que possuía grande fábrica de tecidos no início do século. No entanto, ele era mais conhecido por Vasco apenas, nos meios intelectuais e artísticos do Rio de então. Possuía uma biblioteca considerável, com numerosos livros em vários idiomas, a qual infelizmente se dispersou após a morte de sua esposa, em 1936. O velho Cunha Vasco era alto e careca, de esmerada educação e amigo de vários artistas ilustres, daqui e d'além mar. Os irmãos Bernardelli, Bordalo Pinheiro, Malhoa, Helios lhe dedicaram obras, também dispersas. Um notável retrato de Cunha Vasco, em estilo "caravaggiesco", foi vendido inexplicavelmente pelo genro, em 1939, após a morte de Anna Vasco. O lar dos Cunha Vasco em Botafogo e sua casa de veraneio nas Paineiras eram frequentados com assiduidade por artistas e o industrial agia como verdadeiro mecenas. O mobiliário da residência de Anna Vasco, na Rua General Dionísio nº 24, em Botafogo, abrangia peças de alto valor, também vendidas após a sua morte. Destarte, os filhos da família Cunha Vasco cresceram em ambiente luxuoso e cercados de obras de arte, fato que certamente estimulou as jovens Maria e Anna a iniciarem seus estudos artísticos. Seu mestre de pintura foi Benno Treidler, o bem conhecido pintor alemão radicado no Brasil e que deixou obra, inclusive no acervo do BANERJ. A aquarela foi o meio de expressão artística que mais as atraiu, possivelmente por sugestão médica ou do próprio professor. Com os antecedentes de Adélia, devia ser evitada a convivência com a tinta a óleo. São conhecidas obras de Anna Vasco apenas de pequena faixa de tempo, ou seja, de pouco mais de dez anos: 1897 a 1908. Nascida a 25 de março de 1881, Anna já demonstrava razoável maestria da aquarela aos 16 anos de idade e, aos vinte anos, é indiscutível seu domínio do estilo, ao lado de precoce maturidade. Os anais da Escola de Belas Artes testemunham a concessão de três prêmios quase sucessivos: 1905, 1907 e 1908 - duas medalhas de prata e uma de bronze. Supõe-se que por volta de 1909 interrompeu sua atividade, pois teve de dar assistência constante a sua irmã caçula Adélia, gravemente doente. Em 1911 seguia para a Suíça com a enferma, e também Maria, instalando-se em sanatório em Leysin, perto de Lausanne. Em 1914 lá faleceu Adélia. Sua irmã Maria casara-se com um médico que atendia a enferma, Dr. Joseph Mamie. No início da Grande Guerra, regressaram todos ao Brasil, inclusive o médico suíço. Esse triste intermédio parece haver esfriado o interesse de Anna Vasco pela pintura, embora se conheçam algumas aquarelas com paisagens de neve, datadas de Leysin. Pouco depois, o velho Cunha Vasco caiu também seriamente doente e veio a falecer a 21 de junho de 1918. Dois anos depois Anna casou-se com Joaquim José Domingues Mariz, português amigo de seu pai, tendo dele um único filho, Vasco Mariz.

ANNA VASCO: "Vista do Morro do Cantagalo tomada do Leme", aquarela sobre papel, 1905. Coleção FUNARJ.

Infelizmente, seu marido não tinha pendores artísticos e portanto não deve tê-la estimulado a pintar. Conservou porem quase até o fim da vida o gosto pela música e pelo piano, que soube incutir em seu filho. Vasco Mariz, diplomata de carreira, for cantor de câmara e é autor de numerosos livros sobre música brasileira. Essa mesma tradição artística da família Cunha Vasco ficou também registrada em um dos filhos de sua irmã Maria, que aliás passou o resto de seus dias na Suíça. O único de seus filhos nascido no Rio de Janeiro, Paul Mamie, é um bom pintor e gravador, membro da Escola de Paris, onde habita, há meio século. Foi aluno de Léger e André Lhote e vive normalmente de sua arte (óleos e gravuras). Em 1978, fez uma exposição individual em Tel Aviv, a convite do primo Vasco, atual embaixador do Brasil em Israel.  Resta acrescentar que uma das netas de Anna Vasco, também chamada Anna (Anna Thereza Mariz Gudiño), é restauradora de arte, especializada no período colonial, havendo feito cursos em Quito, Equador, onde seu pai representou o Brasil, e faz parte da equipe de restauração do Museu Histórico Nacional.



ANNA VASCO: "Vista de Copacabana", aquarela sobre papel, 1907. Coleção FUNARJ.

Anna Vasco voltou à Europa mais duas vezes e passou o resto de seus dias sempre em Botafogo, na Rua General Dionísio nº 24, velha residência da família, hoje derrubada. Faleceu a 1º de novembro de 1938, com 57 anos de idade, após longa doença hepática. Era uma mulher alta e esguia, com tez muito branca, cabelos e olhos castanhos, expressão suave. Sua irmã Maria era pequenina saindo à mãe, mas Anna Vasco tinha a constituição do pai, físico que transmitiu também a seu único filho e a sua neta Stella Mariz, médica cirurgiã. Anna Vasco era uma figura doce, de temperamento reservado e frágil saúde. Lia muito e manejava o francês com fluência. Embora seu marido fosse homem de boa instrução (havia sido seminarista em Portugal), não possuía sensibilidade artística. Cultivava apenas a oratória e foi um dos líderes da comunidade portuguesa no Rio de Janeiro até 1969, quando faleceu no Rio. Foi presidente da Sociedade de Beneficência Portuguesa desta capital e um dos diretores do Jockey Clube Brasileiro.

No período em que desenvolveu seu trabalho, Anna Vasco fazia frequentes excursões com a irmã e uma governanta ao Leme e a Copacabana, cujo desenvolvimento urbano era ainda insignificante. Focalizou também a artista vários ângulos da Praia de Botafogo e da Lagoa Rodrigo de Freitas, além de aspectos das Paineiras e Petrópolis, locais de veraneio. Retratos da irmã Adélia e de uma empregada da família atestam outro aspecto de sua mestria na aquarela. Embora não existisse na época, no Rio de Janeiro, o trabalho pormenorizado dos críticos de arte, tanto Anna Vasco quanto Maria Vasco foram citadas com alguma frequência. Laudelino Freire em sua "História da Arte no Brasil", 4º volume, 1916, não só menciona e ressalta os trabalhos de Anna Vasco, mas também reproduz diversas obras em preto-e-branco, que na presente publicação fazemos a cores. Na época foi feita uma edição de cartões-postais do Rio com as aquarelas de Anna Vasco. Dela restam relativamente poucas obras, uma vintena apenas, embora certamente outras ainda possam ser identificadas em consequência desta publicação, que comemora o seu centenário (1881-1981).