Entrevistas


Imagem da A gravura visceral de Leda Watson
A gravura visceral de Leda Watson
"A gravura é uma expressão artística que tem um lado exuberante, espontâneo e tem um lado racional. Eu tenho os dois dentro de mim. Como professora, tenho um lado racional super organizado e tenho o lado "pluff" da explosão total."
Leda Watson

Leda,  gostaria que você nos contasse um pouco de sua história como gravadora e de sua  carreira ao longo destes anos.

Há mais de 20 anos atrás, eu tive uma pretensão como gravadora e artista plástica, de  tomar depoimentos de grandes artistas gravadores. Cheguei a colher vários, que eram registrados em fitas k-7. Fiz inclusive uma entrevista com Isabel Pons e uma serie de outros artistas. Era minha pretensão escrever um livro sobre a história da gravura brasileira com essas entrevistas. Hoje olhando esse material, concluí que a maior parte dele se danificou com o tempo. Deixei então esse projeto de lado e escrevi outro livro sobre técnicas da gravura em metal, baseado na minha trajetória artística e minhas experiências nesta área desde o início no Rio de Janeiro passando por Paris e posteriormente em Brasília onde vivo e trabalho atualmente (Sonhos, momentos, emoções: técnicas e gravuras, 2008). Por insistência dos meus amigos estou escrevendo um segundo livro, desta vez incluindo a história da gravura no Brasil.  Coloquei experiências técnicas desenvolvidas posteriormente e inclui dados sobre a minha trajetória como professora de gravura desde 1975, no Brasil e no exterior por onde passaram mais de 400 alunos até hoje, pois continuo dando aulas. O meu livro fala também da minha vida que, serve como aprendizado para outros artistas. Todos os episódios, as dificuldades que tive como gravadora, estão expostos ali. Todos os macetes que a maioria dos gravadores não conhecem porque poucos frequentaram um atelier de gravura no Brasil por 2 anos (Escolinha de Arte Augusto Rodrigues com o professor Orlando Dasilva) e em Paris, por 4 anos. Na Escola de Belas Artes de Paris frequentavam inúmeros alunos de várias partes do mundo que traziam para o convívio sua aprendizagem e sua experiência. No atelier do grande gravador Friedlaender, éramos poucos que tínhamos esta oportunidade muito especial. Ao retornar ao Brasil, percebi que, por ter tido o privilegio deste aprendizado na terra da gravura (França), tinha um compromisso moral de transmitir toda esta experiência a todos que se interessassem pela técnica. Não podia guardar isso só para mim. Era uma obrigação moral para com todos que não tiveram essa oportunidade.

Como foi que a gravura entrou em sua vida? Sabemos que você traz em seu sangue o DNA de uma família de artistas, os Campofiorito. Como foi a origem da gravura para você?

Eu comecei desenhando, junto com os jovens da minha família e fazendo “exposições” anuais no grande casarão onde morávamos para vender os nossos desenhos. A família inteira comprava tudo. Fui a única dos três que seguiu o caminho das artes. Prestei concurso para a ENBA (Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro), passei em 1º lugar em 1957, cursei três anos e tive que trancar a matrícula. Tendo me casado com um diplomata virei uma cigana. Vivemos na Suíça, Colômbia e voltei para Brasília com meus 03 filhos pequenos. Pensei inicialmente em terminar o Curso de Professorado de Desenho na ENBA. Conversando com uma grande amiga, e ex-colega na ENBA, Marina Colasanti, segui seu conselho e, passei a frequentar o atelier de Orlando Dasilva. Esta decisão, tomada após muita reflexão, ao desistir de terminar o curso superior, foi consequência da atração por uma técnica extremamente difícil que me permitiria desenvolver os dois lados da minha personalidade: o racional pela dificuldade técnica e o emocional, pelo menos no inicio do trabalho, que poderia se manifestar.   Porque a gravura é uma expressão artística que tem um lado exuberante, espontâneo e um lado racional. Eu tenho os dois dentro de mim. Como professora eu tenho um lado racional organizado e tenho o lado da explosão total. Eu preciso desenvolver os dois. Na gravura você convive com técnicas tão difíceis que para dominá-las, precisa exercê-las muito bem para ter algum resultado. E foi por essa dualidade, explosão criativa e racionalidade que me apaixonei.

“Arbres IV”, 1969, gravura em metal feita no período da Escola de Arte tendo Orlando Dasilva como professor.

E como foi a sua experiência de dois anos na Escola de Arte do Brasil tendo Orlando Dasilva como professor? Como era o processo de ensino dele?

Orlando Dasilva é o maior conhecedor de gravura do Brasil. Sou muito a grata a ele por toda a ajuda e ensinamento que me deu e sempre gosto de fazer essa declaração, pois as pessoas muitas vezes se esquecem de serem gratas. Foi crucial na minha vida para me tornar gravadora o apoio do Orlando Dasilva e da Marina Colasanti. Ali pude começar uma carreira de maneira livre e criativa. Toda essa emoção, inerente ao meu temperamento, explodia na gravura. Com ele aprendi as técnicas, sem que ele interferisse no processo criativo. Para ele, que tinha assessorado Friedlaender, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o que importava era a técnica e não só a imagem.

Leda, sua gravura é uma abstração da realidade captada. Poderia nos falar sobre isso.

Naquela época, a minha gravura já era a abstração da natureza, da realidade. Nos anos da Escola de Arte minha temática eram aqueles emaranhados de árvores em água forte. Foi um começo maravilhoso e não houve uma condução da minha liberdade de expressão o que me fez seguir adiante. Do Rio de Janeiro segui para Paris acompanhando meu marido.

Leda Watson e seu grande mestre em Paris, Johnny Friedlander

Como foi sua experiência no Atelier de Friedlaender quando você foi para Paris?

O processo de ensino do Friedlaender é completamente diferente do que poderíamos imaginar. Ele não “ensina“, como não ensinou no curso do Rio de Janeiro à frente da oficina do MAM. Em seu atelier de Paris, o aprendizado se dava através da convivência, aprendíamos por osmose. Ele ficava trabalhando com a sua assistente e nós íamos a sua sala apenas para imprimir, pois a prensa ali ficava. Ele fiscalizava tudo mas não dizia nada. Uma só vez em quatro anos, estando eu com dificuldade em uma técnica, ele decidiu me ajudar e permaneceu mais de uma hora me mostrando o caminho técnico correto para resolver o problema. Nós aprendíamos observando seu trabalho, vendo-o imprimir; era assim que se aprendia em seu atelier.

Sua obra foi influenciada pela obra do Friedlaender?

Não, pois quando você olha minhas obras  feitas ainda no Rio de Janeiro e o desdobramento delas no atelier do Friedlaender em Paris, perceberá que desde essa época eu já fazia a representação do cerrado. Inexplicavelmente, desde sempre – Rio de Janeiro, Paris e Brasília – a vegetação do cerrado estava presente. Sempre vinha à Brasília muito antes dela ser inaugurada, era apaixonada por esse lugar. Atravessávamos de jipe o lago Paranoá, ainda sem água, com meu primo Italo Campofiorito que trabalhava com o Niemeyer. Vinha sempre aqui, apaixonada, e convivi com Ana Maria Niemeyer, muito minha amiga naquela época e, posteriormente uma excelente galerista. Inconscientemente isso ficou registrado em minha memória afetiva e visual. Era apaixonada pela ideia de Brasília ser a capital do Brasil e me apaixonei por essa paisagem sem me dar conta. Apenas olhava aquilo tudo, o cerrado sofrido, as árvores nascendo tortas em meio àquela seca e depois, com a chuva, tudo crescendo no meio do verde. Acredito que isso causou um grande impacto visual em mim e quando fui fazer gravura com o Orlando Dasilva no Rio e continuei com o Friedlaender em Paris, vi que o que saia da minha imaginação eram, justamente essas imagens.  Eu conhecia Brasília mas não tinha ainda a consciência do quanto aquela vegetação do cerrado influenciaria minha obra.

E como foi o recebimento de sua gravura em Paris?

Foi ótimo e produzi bastante nesse período. Fiz minha primeira individual na Galeria Bernier. Vendi muito. O Friedlaender me aconselhava sempre sobre o caminho que deveria seguir e as pessoas que devia procurar. Me dizia que eu era uma gravadora e deveria expor numa galeria especializada em gravura e não em qualquer lugar. Posteriormente comecei, com a minha pasta de gravuras a visitar as galerias. Deixei algumas obras em consignação, algumas galerias nem me receberam, até que parei em frente a uma grande e importante galeria, a Romanet, e, meio tímida, resolvi entrar para tentar falar com o dono da galeria. A sua secretária me recebeu com simpatia, coisa rara para quem não havia marcado entrevista, talvez porque falasse bem o francês. Pediu, então, para que aguardasse 5 minutos enquanto mostrava minha pasta para o dono da galeria. Quando voltou, disse que o Sr. Romanet me receberia. Tive então a notícia de que ele teria gostado tanto do meu trabalho e considerado as gravuras tão boas que ele compraria todas as 50 gravuras que estavam na pasta. Foi um dia memorável em toda a minha vida, tamanha felicidade. Daí começou uma relação profissional maravilhosa com a Galeria Romanet que me permitiu ter meu trabalho mais apreciado. Recebi, então, o convite da Sociedade de Mulheres Bibliófilas (Société des Femmes Bibliophiles) , formada por russas que editavam um livro a cada dois anos, para ilustrar o próximo livro delas. Para se ter uma idéia do poder dessa Sociedade, o último artista convidado tinha sido Salvador Dalí. Queriam fazer uma nova edição com um gravador desconhecido e novo e se encantaram com o meu trabalho. Estudei o texto de um livro de Jules Laforgue recomendado por elas , fiz duas gravuras que foram aprovadas por unanimidade pela comissão de notáveis. Parecia um conto de fadas e me sentia a própria “gata borralheira“. O que elas curtiam era acompanhar o trabalho do artista por 2 anos em seu atelier. Infelizmente, meu marido logo depois foi removido para o Brasil e com isso precisei renunciar a esse projeto que teria me consagrado definitivamente como gravadora em Paris.  Tinha 3 filhos para cuidar e não teria como sobreviver sozinha em Paris. Tive medo. Mesmo assim por muitos anos, continuei vendendo minhas gravuras para os editores e trabalhando com algumas galerias. Vendi mais de 15 edições de gravuras e todas elas fazem parte hoje do acervo da Biblioteca Nacional de Paris. Mas você acha que alguém aqui no Brasil valoriza isso? Mais tarde Friedlaender fez uma carta de apresentação elogiando o meu trabalho, algo inédito, segundo ele, em toda a sua vida.  Ele disse: “Leda você foi a única pessoa para a qual escrevo essa carta, você faz uma excelente gravura”.

“É um prazer para mim responder ao pedido de Lêda Watson. Ela trabalhou em meu atelier durante três anos (outubro de 1970 ~ outubro de 1973). Ela foi uma das minhas alunas mais dotadas de espírito de invenção e criatividade. Ela dominava totalmente as técnicas da gravura e encontrou caminhos que prometem as maiores esperanças.”

Johnny Friedlaender Paris, 18 de novembro de 1975


Ainda em Paris, fui premiada em 1973, no Salão dos Artistas Franceses e convidada para receber a medalha no Grand Palais. Surpreendi o adido cultural da Embaixada do Brasil por não terem sido comunicados da minha premiação, pois, segundo eles isso não deveria acontecer. Fiquei muito emocionada em obter esse prêmio por meu próprio mérito artístico, sem ajuda ou influência de ninguém.

“A gravura é a multiplicidade da arte, é uma arte original que vale tanto quanto uma arte única mas é reproduzida para que todos tenham uma obra de arte a um preço acessível.”

Leda Watson


“Taches V”, 1975. Gravura em metal executada em Paris

O Friedlaender chegou a comentar com você sobre a experiência que ele teve no Rio durante a instalação do Atelier de Gravura do MAM?

Sim. Ele adorou todos os alunos mas ficava triste quando alguns deles não o citava em seu currículo  como professor . Elogiou muito Edith Behring, Piza, Rossini Perez.  Adorou a experiência e os gravadores brasileiros.

O conceito de reprodutividade da gravura. Como você vê a questão da reprodução da gravura enquanto múltiplo artístico? Suas gravuras em particular têm tiragens muito pequenas.

Tem todo um ritual. Existe uma lei universal onde devemos imprimir a gravura em metal até 99 exemplares, isso, dependendo da técnica senão seria menor. As demais técnicas, xilogravura ou serigrafia, não perdem em qualidade quando a tiragem é maior. Apesar do processo de “Acierage”, que é um banho de aço que permite que a chapa resista ao processo de grandes tiragens, em se tratando de gravura em metal ainda é recomendável que seja impressa em no máximo de 99 exemplares.

Mas qual a razão da gravura e da sua importância?  É a multiplicidade da arte, é uma arte original que vale tanto quanto uma arte única mas é reproduzida e todos têm oportunidade de adquirir uma obra de arte a um preço accessível. Essa é a idéia da gravura artística. Você faz, você imprime e divide sua arte com mais pessoas. É uma arte múltipla. A gravura é uma forma de arte generosa. Quando eu mesma imprimo toda a edição de uma gravura minha, faço em geral 30 exemplares pois é uma tarefa muito cansativa. Em Paris fiz algumas edições de 50 exemplares, mas no Brasil resolvi reduzir. Meu tempo ficou mais curto. 

“Momentos de paz”, gravura em metal da série Emoções que Lêda Watson publicou em Brasília, nos anos 80

Voltando de Paris, como foi o inicio de sua atividade de gravadora e o ensino da gravura em Brasília?

No princípio eu não pensava em criar um núcleo de gravura . Estava devendo edições aos galeristas em Paris. Tinha que produzir muito, imprimir e enviar as provas para eles escolherem e depois contratarem um impressor para realizar a edição na quantidade desejada. A dificuldade no início, foi montar o ateliêr pois meu marido e eu tínhamos um orçamento curto, ele ganhava pouco como diplomata na época. Consegui alugar uma sala na W3 Sul para montagem do atelier que ficou ótimo considerando a exiguidade do espaço.Fui, então, convidada em 1975, para dar um curso de extensão sobre gravura na UNB a convite dos professores Charles Mayer e Barbara Freitag, mulher do Embaixador Sergio Rouanet. A turma tinha 26 alunos e eu quase enlouqueci! Para ensinar gravura você deve ter uma turma de 5, 6 alunos no máximo. Todos aprenderam e ficaram apaixonados pela gravura. Em 1975 não havia professor de gravura na UNB e meu atelier era bem pequeno e não cabia aquele monte de alunos que queriam continuar a fazer gravura. Então eles foram alugando as salas ao lado do meu atelier e assim foi fundado pelos alunos o 1º Núcleo de Gravadores de Brasília. E começamos a trabalhar juntos.

Tínhamos na época uma grande empresa em São Paulo, a Topal, que nos fornecia todo o material. Eles simplesmente mandavam tudo o que eu queria, além de muita coisa que trouxe de Paris. O mais estranho disso tudo, foi que em 1979 fiz a transferência dos meus créditos da EBA que não havia terminado para a UNB e assim terminei meu curso com direito ao diploma de curso superior. O reitor da UNB me convidou então para ser professora da UNB para que eu pudesse passar a todos minha experiência acumulada de anos e anos em gravura. Mas fui vetada pela diretora do departamento e assim não dei aulas no UNB, deixando de oferecer meu trabalho e meu conhecimento gratuito para centenas de alunos durante 30 anos  durante os quais poderia ter atuado. O meu atelier foi criado em 1973 mas comecei a dar aulas em 1975 e durante todos esses anos, mais de quatrocentos alunos, em grupos de 5 ou 6, passaram por mim. Isso sem contar com os cursos que ministrei no exterior (Nicarágua, Costa Rica, Panamá , Perú e Venezuela).


“Vol de nuit”, gravura em metal de Lêda Watson impressa em Paris, 1972


Durante o período da ditadura você foi em algum momento pressionada por algum amigo a produzir uma gravura de conotação política ou social?

Eu sempre fui política. Minha família, de descendência européia , sempre pensou em política pois está no sangue. Desde jovem me interessava pelo assunto, tinha minha opinião. Só que o mundo evolui, tudo evolui e aquela posição não tem hoje mais sentido. Eu sempre pensei que o trabalho de um artista deve estar de acordo com os fatos que o cercam , mas isso não deve representar o mote principal, pelo risco de perder a força interior e autenticidade. O racional é importante na realização de uma obra de arte, mas sempre achei que o visceral é que é importante.  Se eu quiser fazer uma gravura racional, com todas as técnicas de desenho e gravura que aprendi, é só pegar o material e fazer. Mas não teria a força que tem a minha gravura, porque não viria de dentro de mim. Viria da cabeça e não do coração. A força de uma obra de arte não está, obrigatoriamente, em seu cunho político e social , mas sim na força e na qualidade estética que ela apresenta.

Eu respeito quem o faz, mas se eu fosse fazer isso, não iria corresponder a minha necessidade interior, eu iria violar meus princípios. Não ia fazer o que eu penso, o que vem de dentro de mim.  Quando terminou o regime militar fiz uma grande “Exposição no Varal”, desmistificando o papel da arte como algo distante das pessoas. Até então expúnhamos as obras em galerias e não penduradas num varal com pregadores de roupa. As pessoas pegavam as gravuras com as mãos, escolhiam, compravam, sem aquela distância do vidro, da moldura e da galeria. Foi um sucesso total  de vendas e de público. Repeti  recentemente, aliás, essa mesma experiência em  meu atelier na minha residência e foi igualmente um sucesso.


“Emoções IV – a conquista”, gravura em metal da Serie “Emoções”, impressa em Brasília

Alguma vez você teve vontade de voltar para o Rio de Janeiro?

Toda vez que algo acontecia na minha vida e pensava em sair daqui, parece que   “tramas espirituais” atuavam e eu acabava desistindo. Então pensei: vou parar de tentar voltar para o Rio de Janeiro e assumir de uma vez que sou brasiliense. Eu sentia um “chamado” aqui, não podia voltar. Tinha que sobreviver, tinha que trabalhar, já tinha passado num concurso público para me tornar professora de novo e então desisti de vez. A cidade tem alguma coisa que te prende, algo inexplicável. Eu adoro isso aqui, só estou brava por não ter mais chuva como antes!

Como é seu processo de criação?

Eu começo a fazer uma água forte, que é uma cera que se espalha pela placa, pego a ponta de aço e eu não sei o que vai acontecer. Eu vou passeando com a ponta, vai pra cá, vai pra lá, sem uma idéia pré-estabelecida, não sei o vai acontecer. Se aparecer uma figura feminina será mera casualidade. Os meus alunos descobrem passarinhos no meio daquele emaranhado e eu acho divertido. A primeira fase (etapa de criação) da minha gravura é totalmente visceral, eu não sei o que vai sair. Depois, evidentemente, sobre essa água forte usarei outros processos, pois uso muitas cores e vários recursos de impressão. Tinha pouco dinheiro para comprar placas e tive que criar minhas próprias técnicas de impressão  para poder fazer muitas cores numa mesma placa; eu mesma criei isso por pura necessidade. Não foi com o Friedlaender nem a Escola de Belas Artes. Após essa imagem inicial da primeira fase, tenho que pensar o que quero com essa gravura: quero relevo? Quero tantas cores? Enfim, vou separando tecnicamente as cores dentro das possibilidades técnicas usando a parte alta e a parte funda para conseguir muitas cores numa mesma placa.

De forma didática Lêda Watson exerce seu papel de artista mas também de professora explicando o processo das variadas técnicas da gravura em metal em seu ateliêr em Brasília.

Qual a relação hoje do mestre e aluno da época em que você fez gravura?

Todo mundo quer ser artista e hoje há muito facilidade para isso. Desde Duchamp a coisa começou a mudar. Ele fez uma brincadeira e foi gerando um caminho, que aliás, como disse Affonso Romano de Santana e Ferreira Gullar já deveria ter se esgotado há muito tempo. A transgressão existe e é importante, mas não deve ser eterna, mas sim para promover uma mudança e não para ser uma facilitação. Sou, algumas vezes, contra o abuso que essa coisa de arte contemporânea pode trazer. As artes plásticas falam por si só, não precisam de texto para sua compreensão, pois aí então estaríamos diante de uma obra de literatura. Existem grandes artistas contemporâneos muito bons que possuem uma grande bagagem por trás. Existe no entanto muita gente que não quer aprender uma técnica complicada como a gravura, por exemplo. Improvisam. Essas pessoas viram artistas às vezes do nada sem um investimento anterior. A arte banalizou, vulgarizou e deixou de ser algo estético e sim apenas conceitual. Há muitos anos não vou à Bienal de São Paulo. Não tenho interesse.

A xilogravura tem a mesma capacidade e amplitude de criação da gravura em metal, numa linguagem mais moderna e contemporânea?

Eu acho que a xilogravura apresenta caminhos de muitos recursos, embora tenha o limite do alto e baixo, dois níveis. Apesar disso artistas como Lívio Abramo descobriram texturas incríveis e não se limitaram ao entalhe em branco ou preto. Mas há um limite. Você pode fazer cores esplendorosas mas as texturas são difíceis. Vi uma exposição de xilo, do Kuniyoshi em Paris que me deixou completamente impressionada, passei mal de tanta emoção e deslumbre. Quem faz também uma xilos enormes e lindas é a Maria Bonomi. Uma vez fui a uma exposição dela e me encantei com sua simpatia e talento. 

O papel da crítica em relação a sua gravura? Precisam conhecer melhor a arte da gravura para se tornarem críticos?

Penso que há muito tempo não temos crítica de arte em Brasília. Há muitos anos atrás existia um crítico de arte do Correio Brasiliense chamado Hugo Aurea. Ele não me conhecia mas escrevia como grande conhecedor das técnicas de gravura. Você para criticar tem que conhecer. Surgiu recentemente o trabalho de curador, você acaba tendo bons artistas que conseguem fazer esse papel mas também outros menos capacitados atuando como críticos. Tive críticas muito boas de grandes profissionais do Brasil. Você conhece hoje bons críticos de arte no Brasil? A única que crítica que faço além da gravura é escrever sobre ela, nunca poderia ser curadora ou crítica de arte apesar de já ter sido convidada uma vez. Em relação ao papel da crítica, todas as que recebi, apreciei muito. A crítica do Lívio Abramo sobre a minha obra representou um grande momento em minha vida. Fui chamada por ele para fazer uma exposição no Uruguai sem nunca ter me visto antes, mas apenas porque conhecia meu trabalho e gostava  de minhas gravuras.

“Doce primavera”, gravura em metal de Lêda Watson, 1975

Pode se ensinar arte? Se tornar artista?

Tenho uma opinião formada sobre isso e inclusive já escrevi textos sobre o assunto. Todos nós nascemos com capacidade criativa. Fui professora primária no Rio de Janeiro e todos os alunos eram criativos, alguns mais, outros menos. À medida que vamos nos racionalizando, aprendendo a ler, escrever e opinar,  vamos nos condicionado a ter opiniões externas a nós , que não vem de nosso interior. As crianças são naturalmente criativas , mas os adultos tem uma auto censura muito grande e nem sempre conseguem criar. Eu inventei uma técnica baseada na respiração e concentração, onde o aluno, de olhos fechados, ao soltar o ar na expiração, vai traçando o desenho com um lápis macio e o resultado é surpreendente. A energia aparece na qualidade e na força do traço, e a pessoa vai adquirindo segurança em sua criação. O aluno fica se censurando o tempo todo, preocupado em fazer o que ele aprova, o que a sociedade aprova e não o que vem de dentro de si. Funciona mesmo!

Litogravura, serigrafia, xilogravura, gravura? Tantas técnicas… mas é tudo gravura?

Há um grande equívoco sobre isso. Esse é um problema do Brasil. Dei aula em vários países da América Latina e eles distinguem muito bem, o que é apenas uma estampa do que, de fato é uma gravura. Sabem perfeitamente o que é gravura. Aqui colocaram tudo num mesmo saco nivelando todas as técnicas como se fossem uma só e, o que é pior, usando a palavra” gravurista”, o que não é verdade. Somos gravadores. Sem a incisão, o entalho na matriz  é e será sempre apenas uma estampa.  Gravura mesmo só em metal ou xilogravura e ponto final.

JULIO REIS


Imagem da Isa Aderne: entrevista para a série Depoimentos do livro Gravura Brasileira Hoje
Isa Aderne: entrevista para a série Depoimentos do livro Gravura Brasileira Hoje
Em 1995 a Oficina do SESC-TIJUCA publicou três livros de entrevistas denominados “Gravura Brasileira Hoje - Depoimentos”. A publicação foi editada pelas professoras Heloisa Pires Ferreira e Maria Luiza Luz Távora a  partir das entrevistas feitas por Adamastor Camará,  onde foram colhidos os testemunhos dos mais importantes artistas gravadores do país. Tal publicação tem uma importância histórica relevante para a compreensão do percurso da gravura no Brasil e a coleção,  além de estar esgotada, não é facilmente encontrada nem em acervos públicos. Por isso, a Galeria O Papel da Arte estará reproduzindo todas as entrevistas publicadas e assim  contribuindo para o conhecimento da arte da gravura e da sua história através de seus maiores expoentes. Aproveitem e conheçam a trajetória destes maravilhosos artistas.

“Quando motivada, a gente deve fazer o que quiser.
O artista não tem limites, não é?”
Isa  Aderne


FORMAÇÃO DO ARTISTA E SURGIMENTO DO INTERESSE PELA LINGUAGEM DA GRAVURA


Isa, como você se interessou por arte? Como foi sua trajetória nesta área?

IA: Nasci em Cajazeiras, Paraíba, em 1923. Meu pai casou, foi para o Rio Grande do Norte e depois para a Paraíba. Era a época de Epitácio Pessoa e ele fiscalizava as obras da Inspetoria de Secas no Nordeste. Minha mãe foi junto, e eu nasci em Cajazeiras, na casa construída para o presidente Epitácio Pessoa, com todos os equipamentos de um palácio – hoje fica ao lado do Palácio do Bispo, atual agência dos Correios.

Eu era ainda pequena quando vim me batizar no Rio. Só voltei para o Nordeste quando o trabalho das secas foi retomado com Getúlio Vargas. Fomos para General Sampaio, onde havia um açude em construção, devido à seca. Daí deriva a presença em minha gravura em torno do tema da seca. Vimos crianças morrerem, vimos a miséria de perto; chegavam as viúvas com as crianças doentes e banhávamos as crianças, dávamos roupa e comida. Tive contato com a arte muito cedo. Meu pai era como se fosse irmão do filho único do pintor Modesto Brocos. Ele se chamava Adriano. Quando meu pai casou, Adriano também casou e teve um filho. O Péricles era mais ou menos da minha idade e brincávamos no ateliê do Modesto, em São Cristóvão, como se fôssemos donos. Mexíamos com as telas e os cavaletes. Eu olhava e revirava, e a gente brincava de correr e de pegar. E  eu criança, via aquelas pinturas e me encantava.

Meu pai voltou para o sertão, desta vez para o Açude Piranhas. O primeiro engenheiro morreu de tifo, o segundo teve um colapso nervoso e meu pai foi chamado para dar um jeito na situação. O negócio lá estava horrível, com a epidemia de tifo. Até eu peguei tifo no meio do caminho e fiquei com a minha mãe em Fortaleza, enquanto meu pai seguia com os filhos pequenos para o meio das secas. Nesse ano, 1932, ficamos sem estudar, e em 1933 meu pai nos colocou com uma professora dentro de casa, D. Benedita, porque a gente não podia ir para as escolas, elas estavam cheias de doenças. Depois, entrei para o colégio das irmãs. Essa época foi muito interessante, pois foi aí que me integrei com o desenho. Minha mãe perguntava o que eu tinha feito no colégio e eu mostrava um “desenhozinho”. Eu era interna, não se podia voltar todo dia aquelas doze léguas, mesmo de carro. Aquele desenho, era uma cópia de um livro qualquer, feito num papel fino. Quando vi que minha mãe estava pensando que eu mesma tinha feito, fiquei perplexa porque, para mim, só quem desenhava bem era o Modesto Brocos. Aquelas pinturas do Modesto me fascinavam. Ele, para fazer um quadro, fazia várias vezes a mão, o pé, o olho, o olhar. Eu pensava que diante daquela maravilha do Modesto jamais poderia fazer um desenho, só admitia copiar. Mas como minha mãe acreditou que era meu, achei que tinha de deixar que ela achasse que eu sabia desenhar. Assim, comecei. Desenhei, desenhei, desenhei. Tirei tudo o que foi cópia da minha frente, nunca mais copiei. Comecei a fazer o meu desenho assim, solto.



ISA ADERNE: “Este é o meu sacrifício”, xilogravura de 1969

Quando vi,  já sabia desenhar. Ao chegar ao colégio Anglo-Americano, em 1938, aqui no Rio, o professor perguntou: “Quem gosta de desenho aqui na sala?” Era o professor Carlos Miranda. Eu disse que adorava desenhar. Ele pediu que eu e a Tereza Rocha, a outra aluna que gostava de desenhar, fôssemos ao quadro-negro. Metade do quadro para cada uma. Ganhei, aí, meu primeiro prêmio de desenho e fiquei com muita vergonha. Fiquei famosíssima no colégio. Comecei a fazer desenho para os colegas. Ajudava todo mundo e depois de um tempo fiquei experiente mesmo.

Dei a sorte de ter, no segundo ano ginasial, a educadora inglesa Miss Concy Ligonto. Ela nos mudou de sala, além de proibir que eu continuasse desenhando para os outros. A sala estava repleta de modelos de Bernadelli, amigo de Mr. Ligonto. Como amigo do colégio, ele doara todos os modelos de gesso. As aulas ali eram divinas. Já imaginou, durante as aulas de matemática, história e latim os professores falando e eu com os cadernos treinando? Já nem lembro bem como desenhei a mão de Santa Cecília! Quando fiz o vestibular para Belas Artes,  passei direto.

Entrei na Enba em 47, para o curso de pintura. Gravura, até então, nada. Meu pai queria que eu fosse arquiteta. Estudei geometria descritiva com um arquiteto amigo do meu pai, estudei modelagem. Fiz duas aulas com a Renina Katz, num cursinho pré-vestibular, e passei fácil.

No fim desse ano, fiz tudo o que era possível fazer, até iniciei umas aulas de pintura, porque eu sabia que no fim do ano ia casar. Como não deu para casar naquele ano, fiquei sem estudar e tranquei a matrícula. No ano seguinte, fui morar em Cabo Frio. Meu pai já tinha terminado o trabalho da primeira fábrica de papel e celulose que a Klabin tinha em Monte Alegre, no Paraná. Então fui para a Companhia Nacional de Álcalis. Meu  pai foi fazer a sondagem e, a essa altura, morava em Arraial do Cabo. Ali conheci Pancetti e o Campofiorito me disse que eu poderia ser aluna de Pancetti. Quando fui falar com ele, disse-me que estava tuberculoso, ia para a Bahia, não poderia ser meu professor. Disse-me que eu era muito jovem e devia prosseguir, ele não tinha condições. Quase morri de tristeza.


ISA ADERNE: "Iemanjá", xilogravura de 1969

Pancetti morava do lado da minha casa, no hotel dos funcionários, para se tratar da doença. Fiquei ali, pintando e desenhando sozinha. Nessa época cheguei a vender umas pinturas para o hotel. Mas ficou só nisso.

“…resolvi trabalhar com Goeldi,  um homem que dava liberdade, dizia como fazer, que a gente realizasse aquilo que vinha de dentro, aquilo sim!”

Depois me casei. Quando meu quarto filho estava para nascer, minha mãe me disse que dava toda ajuda para eu voltar a ser aluna das Belas Artes. Aceitei, minha situação era difícil, não tinha dinheiro nem para a passagem. Meu marido passara seis meses desempregado. Eu, então, comia no restaurante dos estudantes, no Calabouço, e passava quase o dia todo na escola. Trabalhava e estudava. A empresa era a Monteiro e Aranha, onde fiz os primeiros projetos para a garrafa em silk-screen da Coca-Cola. O primeiro desenho não foi copiado do americano – aí voltei àquela história de copiar. Mas aquilo não me gratificava. Desenho industrial era uma coisa que eu não sentia. Então voltei a me fixar no meu trabalho criativo. Segui sendo só aluna na Escola. Comecei a expor no Diretório Acadêmico, embora não gostando do sistema academizante da escola, que estava tolhendo a minha criatividade. Quando cheguei lá, compunha, fazia esbocetos, fazia qualquer coisa. Depois notei que estava ficando amarrada. Este era o sistema do Gerson Pompeu Pinheiro, diretor de então. Algumas pessoas como o Campofiorito, o Zaluar, o Mario Barata eram mais abertas, porém foram cassadas por motivos políticos.

Tive a decepção da volta. Havia salas de pintura que eu não me lembrava nem de como eram antes. Passava por um ateliê onde via o Goeldi criando. Comecei a ter problemas com o professor Galvão, que corrigiu todo um trabalho meu. Fui reprovada no ano da formatura, apesar de comprovar que estava grávida e que, no último mês, o elevador estava quebrado… Assim, resolvi trabalhar com Goeldi,  um homem que dava liberdade, dizia como fazer, que a gente realizasse aquilo que vinha de dentro, aquilo sim!

“…D. Alda, funcionária da Escola, me avisou da morte de Goeldi e do seu enterro, naquele dia, às 16h. Fiz um desenho do enterro de Goeldi. Estava chovendo nesse dia e fiz figuras com guarda-chuvas.”




ISA ADERNE: "O pecado” xilogravura

Fiz planos para no ano seguinte me matricular em gravura com Goeldi. O bebê nascera e eu fui à Escola na Quarta-feira de Cinzas, para realizar a matrícula. Para minha triste surpresa, D. Alda, funcionária da Escola, me avisou da morte de Goeldi e do seu enterro, naquele dia, às 16h. Fiz um desenho do enterro de Goeldi. Estava chovendo nesse dia e fiz figuras com guarda-chuvas. Sendo assim, fui ser aluna de Adir Botelho. Comecei a gravar, gravar, gravar com toda a vontade. Mas não mostrava tudo o que fazia ao Adir, pois nunca considerava como pronta a minha gravura. Nem sempre eu conseguia o que queria! Gostava tanto da gravura do Goeldi, com aqueles pretos todos! Comecei, então, a sonhar com o Goeldi, que me disse para colocar uma certa gravura no salão. Não falei nada para o Adir. Fiquei quieta. Assim, com dois meses de aula de gravura, eu já estava no Salão de Arte Moderna. O Adir reclamou de eu não lhe ter mostrado a gravura, mas expliquei o que se passara.

Fiz o curso em três anos e me diplomei. Nesta época, a Laís Aderne, minha irmã, ia para a Europa e me indicou para substituí-la na Escolinha de Arte do Brasil. Fiquei realizada, tinha saído de um curso que gostava pra fazer uma coisa que gostava e ter o primeiro emprego na área. Foi muito bom! Comecei a gravar muito. Nessa época, produzi as gravuras que marcariam o encontro com meu mundo anterior, ligado à minha vivência no Nordeste. Havia a influência daqueles livrinhos de cordel que via nas feiras. Meu pai, como chefe de obras, sempre nos chamava para assistir às vaquejadas e os cantadores. A gente via muita coisa. Achei, então, que aquilo era uma forma mais interessante de desenvolver um trabalho. Assim, mandei fazer os ferros no Armando, o profissional que fazia para os outros gravadores. Todo mundo usava a vareta de guarda-chuvas, como o mestre Goeldi. Os rolos eram feitos numa casa da Rua das Marrecas. O Armando era um homem de gráfica, que deixava o rolo como a gente queria, mais duro ou mais mole. Costumávamos ir também na Rua Teófilo Ottoni, onde havia uma casa de ferragens para entalhadores.

Depois da Escolinha de Arte do Brasil, tive outras experiências no ensino aqui e no exterior. Em 1968, fui, como estagiária, para o Museu Histórico Nacional, para experimentar as técnicas de restauração. Era também outra forma de ganhar dinheiro.


“Meu crochê I”, xilogravura em papel japonês de Isa Aderne. Coleção Adriano Gonzada, RJ

GRAVURA: REPRODUTIBILIDADE. O MÚLTIPLO COMO DESTINO

 

O que você pensa sobre a questão da reprodutibilidade da gravura como sendo o seu traço fundamental, isto é, a gravura só fazendo sentido se envolver muitas cópias. Nesta série de depoimentos, alguns gravadores argumentam o contrário, chegando a defender a possibilidade da peça única. O que você acha desta questão?

IA:  Isso de muito número é engraçado. As minhas gravurinhas eu as fiz com cinco, pensando: “Se esse negócio é pra reproduzir, se acaba no número cinco, tenho que guardar essa placa pois gosto desta forma e vou querer reproduzir mais depois”. Então, a cada solicitação ia fazendo: de repente, fiz cinquenta. Da próxima vez, vou fazer setenta. Aí passei para setenta, depois cem. Depois fiz mil. Eu tinha as minhas maneiras. Um dia, mandei um trabalho para o Paraná. Era um ex-voto. Eu tinha feito uma promessa…”Meu Senhor do Bonfim, se minha filha ficar boa, faço mil gravuras.” Depois, achei melhor não imprimir as gravuras todas de uma vez. O Salão do Paraná estava para abrir e resolvi mandar o ex-voto da cabeça bipartida. Mandei a placa e a gravura emoldurada. Pedi a minha irmã Dayse, que morava lá, para mandar que os participantes do Salão fizessem as cópias. Aí, num instante saiu. Minha irmã ajudava, ensinava como é que era, como é que não era. A placa ficou por lá, nem voltou, nem sei dela… Em outra ocasião, concluí que olho grande existia. Utilizei uma cerâmica da Celeida para fazer uma urna. A pessoa respondia e se quisesse também fazer a cópia da gravura do olho grande também fazia. Fiz assim, olho de Santa Luzia gigantão, e, ai, fazia tudo o que dava vontade de representar na gravura. Quando motivada, a gente deve fazer o que quiser. O artista não tem limites, não é?

 

TRADICIONALISMO E VANGUARDA EM GRAVURA

 

José Roberto Teixeira Leite, em seu livro sobre a gravura brasileira, observa que o trabalho em madeira manteria um sentido tradicionalista, enquanto que na gravura em metal teria uma marca mais vanguardista. Você concorda com essa relação? 

IA: Discordo. Na Bienal de São Paulo, da qual participei, os gravadores vanguardistas japoneses apresentaram misturas técnicas incríveis, coisas maravilhosas. Quando a gente necessita criar  e está coerente com aquela forma, tudo bem. A Anna Carolina, por exemplo, quanta coisa de vanguarda fez com a xilo! São compatíveis. Depende muito do indivíduo. Se a pessoa tem necessidade de fazer daquele modo, faz. Se quer pesquisar, que pesquise! De repente, misturei clichê com xilogravura. Convém lembrar que o artista japonês tem muita força dentro da tradição e dentro da vanguarda. Na gravura os japoneses nos surpreendem com verdadeiros malabarismos, uma coisa incrível! Marília Rodrigues, aluna de Goeldi, numa técnica tradicional, fez pesquisa e misturou metal com madeira. Acho válido. Depois dos caminhos abertos pela arte moderna, a gente não tem mais limite.



ISA ADERNE:  “Carnaval”, xilogravura sobre papel arroz


ENSINO DO GRAVURA: SUA DIFUSÃO E INFLUÊNCIAS


Isa, você acha que a arte pode ser ensinada? Arte se ensina?

IAPode ser ensinada sim. Considerando a afinidade do indivíduo com suas tendências e suas capacidades. Se ela for ensinada para uma pessoa que não tenha um terreno fértil para aquilo que captou…Arte é arte enquanto um processo criativo e com base técnica também. Edson Motta, na aula de restauração, dizia que se deve ter o apoio da técnica e do material, mas que sobretudo o artista tem que ser um criador. Se aquela coisa ensinada não cair em cima de um ser criador,  que a desenvolva e amplie, aprofunde e siga o seu caminho, nada feito. É como uma plantinha. Você tem uma semente. Se aquela semente não for regada, não cresce mesmo… se não tiver o carinho de um ambiente, não vai dar em nada. A gente não pode pegar uma pessoa e dizer “Vou fazer de você um artista.”


Há diferença no modo de formar gravadores do seu período para o período imediatamente posterior?

IANa Escolinha de Arte do Brasil, o professor tinha muita liberdade para atuar. Certa vez, D. Noêmia me disse: “Isa, que interessante, pela primeira vez estou vendo todos os trabalhos da pasta da Escolinha juntos. Você me devolve sabendo de quem é cada trabalho e cada um com a expressão do aluno.” A técnica era uma só e a expressão variava de acordo com o indivíduo. O trabalho era todo individualizado. Durante o processo de realização das gravuras, os alunos não assinavam, mas eu sabia de quem era cada trabalho pelo tipo de expressão. Isso não acontecia com as pastas do Hugo Mund, por exemplo, o gravador já de influência e ex-aluno de Goeldi. Os trabalhos de seus alunos pareciam as gravuras do Mund.

Descobri que eu tinha mudado os critérios: o aluno não devia fazer como o mestre, mas encontrar a sua liberdade expressiva. E gostei de sentir que dei essa liberdade com uma rigidez técnica, aprendida no ateliê frequentado por mim logo após a morte de Goeldi.



ISA ADERNE: “Menino com seu barco”, xilogravura em papel japonês, 1962

Como vê a influência entres mestres e artistas em formação ou entre um artista e outro? Alguns acham saudável, outros acham questionável?

IAO aluno, para chegar ao MAM, vamos dizer, tem de encontrar a forma mais pessoal possível, podendo até ser melhor do que a do mestre. Mas a influência muito marcante do mestre no aluno tira a individualidade deste último.

Vejamos, por exemplo, na gravura em metal, o grupo de Friedlaender. Todo mundo ficou empolgado com a técnica que ele apresentava. Que maravilha! Mas quem aproveitou melhor foi quem fez à sua maneira, com base na técnica do Friedlaender, é claro, em vez de começar a copiar o mestre. O mestre tem que ser neutro! A influência de Goeldi, em mim, no início da minha carreira, aquela empolgação foi salutar, mas encontrei meu caminho.


A gravura exige a transmissão do conhecimento do mestre e essa situação pode propiciar maior desenvolvimento da linguagem. Você concorda com isso?

IA: Que há uma necessidadezinha de você ter um ponto de referência, há mesmo. Por exemplo, eu senti que, lá na Escola, a gravura floresceu com Goeldi. Ele passou a empolgação dele para os alunos. Eu me lembro: Antonio Dias, Roberto Magalhães, Rubens Gerchman, Ana Maiolino, Marilia Rodrigues, Laís Aderne, éramos todos contemporâneos. Talvez a gravura trouxesse a liberdade de que estávamos precisando, e a orientação de Goeldi fugia do academicismo, o que nas Belas Artes nos prendia um pouco.


A GRAVURA E A CRÍTICA DE ARTE


Como recebe as análises e críticas feitas a seu trabalho?

IA: Considero que  a crítica contribui para o encontro da expressão positivamente. Muitas vezes, mesmo uma crítica dura ajuda-o a localizar um erro que você talvez até não encontrasse. Além disso, uma boa crítica tira os bloqueios, dá força e impulso. Um ótimo exemplo é o Campofiorito, que escrevia para O Jornal, dando apoio aos artistas novos que surgiam. Um deles foi Portinari,  imagine! Também eu  recebi seu estímulo. Costumava-se dar para o grande crítico uma foto ou então a própria  gravura, porque às vezes, ficava mais barato. Quando lhe perguntavam: “De quem são essas gravuras?”, a resposta era simples: “São de artistas que começam.”. isso foi uma constante ao longo de toda a vida de Campofiorito, que, com o incentivo aos artistas, dava-lhes maiores condições de desenvolver seus trabalhos, além de fazer com que o público tomasse conhecimento do que estava sendo produzido, porque, se não fosse crítico, o público não estaria nem aí.



Imagem da Andre de Miranda comemora  seus 40 anos como xilogravador
Andre de Miranda comemora seus 40 anos como xilogravador

A xilogravura é meu alimento espiritual diário. É com ela  que me equilibro. Xilogravar pra mim é rasgar, cortar, desarraigar uma superfície que resiste. E quanto mais resiste mais decisivo será a marca deixada.”

                                                                                       André de Miranda

André de Miranda, um dos mais importantes gravadores do país, completa em 2018, 40 anos dedicados à arte da gravura. Para comemorar essa data, nos concedeu essa longa entrevista onde fala de sua carreira, seu aprendizado e seu amor incondicional à xilogravura.


André, como se deu o seu interesse pela gravura? Geralmente as pessoas primeiro se encantam com a pintura mas você acabou enveredando pelo caminho da xilo.

AM: É verdade. Mas eu me iniciei pela pintura, devia ter mais ou menos 15 para 16 anos.  Mas antes disso quero contar uma pequena história: nasci no bairro do Maracanã próximo à Quinta da Boa Vista onde meu pai tinha por hábito nos levar nos finais de semana, pois lá era o nosso verdadeiro quintal. Devia ter meus 5 ou 6 anos e  lembro que havia um grupo de pintores ao ar livre e isso nunca saiu de minha memória. Então, não queria brincar e sim ficar olhando os caras pintando.  Já adulto, fui descobrir que esse grupo pertencia a uma escola de pintura ao ar livre chamada Colméia, que ficava num prédio anexo do zoológico porém nunca me matriculei nessa escola. Aos doze anos, após sofrer um acidente com uma queimadura que afetou minha visão, o médico recomendou a meu pai que me matriculasse em alguma atividade onde pudesse exercitar minha criatividade e ai fui começar a estudar pintura em 1975 na Academia de Arte e Cultura Elzira Amábile no bairro da Usina sob a orientação da professora Genia Waisberg. E a partir daí nunca mais parei de me interessar por arte. 

André de Miranda em suas primeiras aulas no ateliê de pintura

Em 1976/1977 comecei a frequentar o atelier da pintora chilena Jemile Diban, em Copacabana. Também frequentava esse ateliê o pintor Jose Maria Dias da Cruz, que sempre me elogiava e gostava muito da minha plasticidade na pintura. Depois a Jemile foi para a Europa me presenteando com o seu cavalete e todo o material de pintura. Apresentou-me a artista Maria Cecília Castro Pinto. De início, Maria Cecília levava-me para pintar e estudar no Parque da Cidade e posteriormente, alugou uma casa à Rua Santa Alexandrina, nº 445 no bairro do Rio Comprido. Com o tempo, Cecilia alugou uma das salas para o gravador Ciro Fernandes que já era bem conhecido na época. Já devia estar com meus 18 anos e nem sabia o que era gravura! Ciro montou seu atelier na sala ao lado e recebia a visita de artistas como J.Borges, Teixeira Mendes, Tilde Canti, Samico, Anna Carolina de vez em quando, Marcelo Soares.  

“Gêmeos”, xilogravura de André de Miranda para o álbum “Horóscopo para os que estão vivos”, do poeta Thiago de Melo, 1981

Um dia o poeta Thiago de Melo encomendou ao Ciro um álbum chamado “Horóscopo para os que estão vivos”, editado com tipos móveis – ele tinha um prelo -. O Ciro tinha pressa em entregar o serviço e me perguntou se eu podia ajudá-lo. Deu-me uma goiva feita por ele mesmo – que tenho até hoje – e disse: André, corta aí. E assim fui fazendo uma ilustração atrás da outra sendo a primeira o signo de Gêmeos. Quando o poeta Thiago de Melo chegou, adorou tudo e fui fazendo uma atrás da outra; não parei mais e não quis mais saber da pintura.  Na época a Cecília não se incomodou por eu ajudá-lo, pois estava muito duro e ganharia alguns trocados. Ciro me abriu essa janela para o mundo da xilogravura pelo qual sou muito grato. 

"Jacarepaguá", xilogravura de 2006 de André de Miranda 

Em 1981 fiz minha primeira exposição individual das xilos e matrizes dos dois últimos anos na Galeria de Arte que a antiga biblioteca do Leblon possuía na Rua Dias Ferreira. Tive o apoio do Marcelo Soares que me deu o primeiro rolinho e do Raimundo Santa Helena, grande cordelista que me incentivou a continuar o trabalho.

 

“Forró”, xilogravura de André de Miranda, nos seus primeiros anos como artista xilogravador

Também pendurei muitas xilos no barbante na Feira de São Cristóvão, já vendendo a minha produção. E nunca mais parei. Não tenho mais essas matrizes, se perderam. Não existia naquela época por conta destes gravadores populares a preocupação na preservação das matrizes, registro de tiragem etc. Só mais tarde quando se tornaram artistas reconhecidos é que essa preocupação vai ocorrer. 


André de Miranda no Ateliê de Lídio Bandeira de Mello, onde recebeu aulas de desenho

Quais foram seus primeiros mestres na xilogravura?

AM: Não fiz Escola de Belas Artes ou cursos formais de gravura. Meu aprendizado foi diretamente assistindo os grandes artistas da época produzindo no ateliê. Quando eu fui ter aulas com o Ciro – ele disse que nunca me deu aula-, mas aprendi muito com ele. O Augusto Rodrigues que também frequentava o atelier, me deu muitas dicas. O Marcelo Soares, gravador hoje radicado em João Pessoa, me orientou e a Anna Carolina, isso já bem mais tarde, me ensinou muita coisa, em especial o amor à xilogravura, a limpeza no trabalho e na impressão da xilo em cores, afinal ela foi aluna do José Altino. Bebi muito destas fontes e visitando outros ateliês fui aprendendo e aprimorando minha técnica. 

“É com a xilo que construo, falo, grito e me equilibro. É nesta técnica milenar que encontro soluções para meu espírito inquieto.”

André de Miranda

Morei no bairro de Santa Teresa e me tornei amigo do Newton Cavalcanti que morava lá. O meu sonho era ter aulas com ele e lhe mostrava minhas xilos e pedia para ele me dar aulas. Ele sempre dizia:  “eu não vou lhe dar aulas porque você sabe e vai se perder se eu for te ensinar mais alguma coisa”. Aí tentei com a Isa Aderne que também me disse que tudo que eu precisava saber, eu já sabia, não havia nada a ensinar.  Bom, se era verdade ou não eu não sei.  O próprio Samico quando estava no Rio via meus trabalhos e dava orientações mas objetivamente não tive um professor formal de gravura. 


“Outono em Santa Teresa”, xilogravura em duas cores de André de Miranda

Houve a influência destes artistas na sua obra?

AM: Com cada artista eu aprendi algo. Não tive um mestre único no sentido exato da palavra, mas vários com quem convivi ou não. Com a Ana Carolina aprendi o amor à xilogravura, o respeito à madeira. Ela contava que uma vez expulsou do curso uma aluna que disse “que aquelas matrizes estavam boas era para fazer lenha para o churrasco”. Com o Iberê Camargo, por exemplo, para o qual levava meus trabalhos para ele ver, aprendi a disciplina na produção e impressão da obra. Ele dizia sem meias palavras: “Isso está bom ou então isso não presta, rasga e joga fora”. Então de cada um desses mestres e até daqueles com quem não convivi como Adir Botelho ou o próprio “Picasso”, vamos sendo influenciados pelas suas obras. O Goeldi e próprio Lívio Abramo, que foi uma paixão muito grande. Com o Lídio Bandeira de Melo tive algumas aulas de desenho, enquanto que com o Augusto Rodrigues, aprendi como organizar um portifolio, a mapoteca, a limpeza do desenho, a linha. Quer dizer, cada um foi contribuindo de alguma forma para a minha formação artística. Mais tarde fiz gravura em metal com o Marcelo Frazão e Heloisa Pires Ferreira. 

“Cidade – homenagem à Lívio Abramo” – xilogravura de 2007, que recebeu o Prêmio de Aquisição da 12º Concurso Internacional de Gravura El Caliu – Girona – Espanha

Como foi seu contato com o Lívio Abramo?

AM: Ele frequentava o SESC da Tijuca, era muito amigo da Anna Carolina. Mas na época eu era muito novo, precisava trabalhar para ter meu dinheiro. Trabalhei por mais de 20 anos como designer de móveis.  Cheguei a parar a gravura por 4 anos e resolvei chutar o balde e largar tudo, quando então me mudei para o Mato Grosso do Sul. Então ia de vez em quando lá e em duas oportunidades tive contato direto com ele, que depois me presenteou com uma gravura e também uma goiva que guardo até hoje. Interessante que sempre me identifiquei mais com a obra do Livio Abramo do que a do Goeldi, apesar de críticos de arte considerarem meu trabalho expressionista, porém, sou mais ligado à obra do Lívio do que o expressionismo alemão do Goeldi. Gosto muito das texturas, do lirismo que o Lívio tem em sua obra.

“O ato criativo é uma experiência direta na sensibilidade individual, única e insubstituível na obra de arte.”

                                                                                                           André de Miranda

Em 2000, por ocasião do centenário de nascimento do Livio Abramo, produzi uma gravura em sua homenagem, feita com a própria goiva que ele me presentou. Na época houve uma Bienal de Gravura na Espanha e mandei a gravura que fiz em sua homenagem e acabei sendo premiado. Foi uma grande alegria. De lá para cá costumo dizer que continuo aprendendo. Mesmo após 40 anos dedicados à xilogravura, precisamos de uma vida inteira para aprender e compreender todos os seus nuances. Estou todo dia aprendendo. 


ANDRÉ DE MIRANDA:“Sonho Azul”, 2016, xilogravura em 3 cores

Sua obra é muito coesa. Seu traço é marcante e pessoal. Se pegarmos um trabalho seu antigo ou novo, sabemos que se trata do mesmo artista. Como você chegou a essa linearidade? Em algum momento, surgiram dúvidas se esse era o caminho correto a seguir?

AM: Tenho até hoje dúvidas. A goiva e o buril lhe dão a possibilidade de ter a sua própria marca. Porque você grava e segura o instrumento de uma maneira diferente de outro artista. Como o  Darel e outros mestres e eles consequentemente como outros, esse conhecimento vai sendo passado de uma geração à outra. E aí você acaba conhecendo como era a maneira de imprimir utilizada por Goeldi ou a forma como o Lívio preparava a matriz e assim por diante. Esse conhecimento advindo das experiências de outros gravadores vão enriquecendo o seu próprio conhecimento que é transportado para a sua gravura.

                      “A influência é inevitável. Nenhum artista vive no vazio.”

                                                                                                          André de Miranda

Como você vê o tradicionalismo na gravura e a vanguarda da gravura, a obra contemporânea e a diversidade dos materiais utilizados como matrizes atualmente?

AM: Eu acho maravilhoso esses processos híbridos e alternativos onde a gravura possa surgir. Gravura é aquilo que é gravado, como pintura é pintura. Vamos dar nomes aos bois. São processos gráficos. Já vi exposições de impressões feitas com plotter que eram chamadas de gravura e não é. Você pode juntar as técnicas, mas quando uma das técnicas ultrapassa 30% da área do trabalho, é esta técnica que deve ser nomeada, é a que se sobressai. Essa tendência dos novos artistas gravarem em novos formatos tem nos mostrado coisas muito boas da mesma forma como tem muitas xilogravuras feitas tradicionalmente porém muito ruins. Insisto, precisamos dar nome correto às técnicas. Uma gravura feita em MDF é uma gravura porque houve incisão, eu mesmo já usei esse suporte, mas não posso chamar de  xilogravura porque MDF não é madeira. Vamos nomear corretamente como por exemplo “gravura em relevo, impressa em matriz de MDF”. E ai você vê por aí “gravura digital”, mas não existe essa nomenclatura. O próprio inventor da litografia, Salois Senenfelder (1771 – 1834), dizia que litografia não era gravura! 


ANDRE DE MIRANDA: “Anoitecer”, 2014, xilogravura em 3 cores

E como você vê o aprendizado da gravura em cursos regulares?

AM: Os artistas que saem do curso conseguem aprender a técnica em um ano, mas daí a você produzir uma boa xilogravura, são necessários muitos anos. É muito difícil, exige esforço, paciência e persistência. A própria Anna Letycia, com que convivi algumas vezes me dizia que “a técnica da xilogravura era a mais difícil das técnicas, pois as pessoas confundiam a arte da xilogravura com produção de carimbo”. Trabalhar em preto e branco já é difícil e você ainda ter que dar uma expressão a essas duas cores usando um suporte tão primitivo. É o mais difícil dos suportes quando você quer buscar um resultado plástico e expressivo.

Com  tempo e acumulo de experiência, você começou a dar aulas. Nos conte um pouco sobre seu  papel como professor de xilogravura.

AM: Foi tudo muito de repente. Quando ia participar das exposições, as pessoas ficavam me perguntando como se fazia, como poderiam aprender e aí foram surgindo convites para fazer oficinas por várias cidades do Brasil. Sou muito rigoroso, aprendi com o Iberê Camargo. Uma vez ele me contou que pegou o pincel de uma aluna e o jogou pela janela, pois o pincel não prestava. Sou muito criticado por alguns alunos pelo rigor, inclusive muitos abandonaram o curso. Só ficam aqueles que realmente querem se tornar gravadores. Pude ajudar o desenvolvimento de novos artistas como a Lucie Scherer no Acre, o Carlos Henrique Pereira em Palmas, Tocantins e muitos outros excelentes gravadores por todo o Brasil. Morei de 1993 a 1997 na cidade de Três Lagoas, MS, onde ministrei oficinas de xilogravura em diversas cidades e na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Fui professor de desenho no SENAI Construção Civil Rio de Janeiro em 1999. Fui membro do Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul e residi na cidade de Curitiba – PR, de 2004 a abril de 2008. Faço sempre palestras sobre gravura por todo este país, como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, Goiás, Recife, João Pessoa, Rio Branco etc. 

 

ANDRE DE MIRANDA: “Luar de Agosto”, 2013, xilogravura em 5 cores

E como você vê a questão da influência do professor sobre a obra do aluno?

AM: Acho válido copiar os grandes mestres para aprimorar a técnica aprendida no atelier. Mas o aluno precisa seguir sozinho o seu caminho e aos poucos descobrindo o seu estilo próprio sem a influência do mestre, que até pode ocorrer no início, mas depois desaparece. Quando comecei a fazer algumas colagens com xilo, uma colega me disse que estava plagiando a obra dela, mas se você for analisar as obras hoje passados tantos anos, verá que são completamente diferentes, até porque a colagem com pedaços de jornais ou partituras é algo que vem desde Picasso. Até você descobrir sua poética, o quê desperta teu interesse plasticamente, é complicado. Influências você sempre terá. Eu sofro influências de todos, desde Picasso a Ciro Fernandes, passando por Lívio Abramo e Matisse, porque de quem você gosta e admira,  você acaba pegando um pouquinho de cada uma dessas fontes. Mas quando vejo a minha série xilocidade, não conheço nenhum outro artista que tenha feito algo parecido. Já a minha série bichos posso ter recebido influências de obras do Grassmann, Roberto Magalhães ou Ciro Fernandes, mas são obras minhas. Fui também aluno de guache do Frank Shaeffer e minha obra não tem qualquer influência de seu trabalho.

O Siron Franco que gosta muito do meu trabalho e de gravura, sempre que nos encontramos ele me conta uma história: o Antonio Poteiro, se tornou pintor por causa dele. Ele produzia aqueles potes, mas queria pintar e não tinha material. Então o Siron deu tela, tinta e material para ele pintar. A primeira tela ele presenteou ao Siron. 

ANDRE DE MIRANDA: "Sem titulo", pintura guache da série de exposições realizadas no Centro Cultural Petrobrás no anos 90

Como você analisa a crítica de arte? Ela ainda existe?

AM: Ela não existe mais. Tivemos críticos importantes: Frederico Morais, Wilson Coutinho, Marc Bercovitch, inclusive em todos os jornais como o próprio O Globo. O caderno B do Jornal do Brasil tinha toda semana. O Frederico de Morais chegou a escrever uma época uma coluna de crítica de artes visuais  mas acabou tudo, como também não há mais galerias. Os curadores tomaram o lugar dos críticos nessa área. Sinto muita falta disso.  Walmir Ayala era muito criticado por que cobrava para fazer uma crítica sobre um determinado artista. Mas era justo! Afinal o artista pagava e estaria nos jornais no dia seguinte. Fiz uma exposição de pintura no Centro Cultural Petrobrás em 1988. Era um estilo naif muito interessante que unia elementos afros com elementos primitivos, como sereias e orixás.  Fiquei tão apaixonado pelo tema que na época cheguei a abrir uma loja de artigos religiosos com meu ateliê funcionando na sobreloja. Obtive muito sucesso, inclusive chegando a participar como entrevistado do Programa Sem Censura.  Nessa época o Walmir Ayala foi à exposição e depois escreveu uma crítica no Jornal O Globo dizendo que a minha pintura era xilo! Nessa época, já estava me interessando pela xilo lá com o Ciro. Mas hoje, quem vai fazer a crítica do meu trabalho? Um curador que sabe bem menos do que eu? Esse trabalho acabou indo naturalmente para os colecionadores como o Paulo Herkenhoff, que é maravilhoso, mas não é mais como era antigamente quando os críticos frequentavam os ateliers dos artistas gravadores para conhecerem os processos de produção, as técnicas utilizadas. Frequentávamos muitas galerias de arte como a Bonino, a Trevo. A Dora Basílio gostava muito dessas minhas pinturas e me incentivava a continuar pois eu teria muito sucesso. E tínhamos galerias comerciais que esses críticos frequentavam e de vez em quando aparecia alguém bom e interessado por gravura.

Então essa troca de experiências entre os artistas com os críticos não existe mais. O artista hoje acaba ficando nas mãos dos curadores, que pouco conhecem a sua obra e também dependente dos espaços disponibilizados pelos centros culturais, administrados por funcionários públicos que infelizmente não estão preparados para fazer uma seleção correta dos artistas. 




ANDRE DE MIRANDA: “Cidade 18 – 11",  xilogravura impressa s/anúncio de classificado de jornal de lançamentos de novos prédios, 2009

Você disse em uma entrevista feita durante uma exposição sua no Paraná que a gravura sempre foi a sua amante. Pode explicar melhor?

AM: É. Eu fui casado 3 vezes e sempre priorizei a gravura; a arte de uma maneira geral. A minha última companheira e ex aluna, por quem sou apaixonado até hoje, a Marisa Hul,  que aprendeu gravura comigo e tem uma xilogravura fabulosa, confidenciou para um amiga em comum que me largou porque a troquei pela xilo; não saia de casa para fazer nada, só queria fazer xilo e que me casei com a xilo, rs… A xilo para mim é a minha grande amante, eu me casei com a xilo mesmo. Mas na verdade nunca larguei a pintura, então não sei com quem sou realmente casado, se com a xilo ou com a pintura. No momento estou produzindo pouco xilo em razão do meu espaço físico que diminuiu depois da mudança de local do ateliê.

ANDRE DE MIRANDA: “Paisagem Fragmentada 2”, 2013, xilogravura em 2 cores 


PAISAGENS FRAGMENTADAS

“Venho tentando aprender com a natureza, entender o caráter caprichoso da luz, que nunca se repete, perceber a arquitetura que não se constrói, perseguindo o desafio que há entre o branco e o preto, orquestrando meu exercício plástico, imaginando em derramadas texturas, linhas e aguadas dispersas entre um trabalho e outro em preto e branco.

Assim são estas paisagens – passagens, vivas, regidas pela imprevisibilidade, grafismo de ondas pretas e brancas movendo-se a cada passante dos cinzas aguados.

Não são paisagens, são passagens.”

                                                                                                          André  de Miranda

 


ANDRE DE MIRANDA: “Era uma vez a minha rua – 3” xilogravura impressa s/anuncio de classificado de jornal de lançamentos de novos prédios, 2006


André,  a partir de 2003 você criou uma importante série de xilogravuras cujo processo criativo durou cerca de 10 anos, a famosa série “Xilocidade – memória urbana gravada”. Poderia nos falar um pouco mais sobre ela?

AM: Através desta série, continuo me apropriando sobre o descaso com a memória da arquitetura em muitas cidades brasileiras. São xilogravuras impressas sobre folhas de jornal (offset) retiradas dos cadernos dos classificados. Em anúncios de novos prédios, imprimo elementos da arquitetura antiga antes presentes nesses mesmos terrenos em que agora prevalece o novo em sacrifício do antigo. Sem nenhum critério e já há muito tempo, estes antigos casarões – alguns tombados – estão sendo vendidos e cedendo lugar a modernos e esqueléticos prédios. Bairros do Rio de Janeiro como Santa Teresa, Catete, Tijuca e Centro, ainda tentam manter seus antigos casarões do início do século XIX. Muitas destas maravilhosas construções foram transformadas em pensões na década de 30, quando em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro ainda não havia a especulação imobiliária. Neles residiam jovens estudantes e famílias inteiras que alugavam seus quartos. Muitos imigrantes que aqui chegavam, subiam suas escadarias e encontravam abrigo nestes sobrados onde estava registrada sua história. Encontrei nesta forma de impressão a maneira mais poética de chamar a atenção para este problema urbano. Fica aqui estampada minha reflexão. A série Xilocidade durou 10 anos, quando então passei para a série Paisagens Fragmentadas.

  


ANDRE DE MIRANDA: “Pichula”, xilogravura que recebeu o Prêmio Aquisitivo no 9º Concurso Internacional de Gravura El Caliu – Girona – Espanha – 2004)

 

Qual a premiação que você mais se sentiu orgulhoso em receber durante essa trajetória artística?

AM: O que considero mais significativo foi o prêmio que recebi com uma gravura da série dos Bichos chamada “Pichula” para uma Bienal na Espanha.  E o prêmio estava vinculado a uma edição de 100 exemplares assinada como 2ª edição. Eles mandaram o papel e eu imprimi e destruí a matriz quando a edição estava completa, como manda as regras internacionais de impressão da gravura clássica. Então eles produziram 100 álbuns com essa gravura incluída e doaram para os 100 mais importantes museus da Europa, dentre eles o Louvre. O Museu Oscar Niemeyer tem essa gravura em seu acervo de exposição permanente junto com os demais exemplares da série Bichos. Essa gravura ajudou muito a projetar minha carreira como artista xilogravador.

E as suas colagens, quando você começou?

AM: Eu sempre gostei de colagens. Elas surgiram quando eu percebi que tinha um grande número de gravuras mal impressas e ai comecei a brincar. Como não tinha espaço para trabalhar pois o atelier estava em obra, comecei a fazer as colagens com essas xilos. Depois eu descobri nos guardados de minha mãe uma quantidade muito grande de partituras para piano que foram de minha tia, da década de 40. O estado delas estava muito ruins, se partindo. Então,  dei essa nova roupagem, transformando-as em colagens junto com as xilogravuras. Fiz centenas e o resultado me agradou muito. Já foram expostas no Museu de Arte do MS e recentemente no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo no Rio.


ANDRE DE MIRANDA: “JAZZ NOTURNO”, colagem de xilos com partituras musicais

Muitos artistas não são bons administradores da própria carreira ou não conseguem organizar a obra e a sua produção. Como você lida com isso, que conselho daria para os novos artistas?

AM: Quando trabalhei na Galeria Performance no shopping Cassino Atlântico eu visitava o  atelier do Scliar no Leblon para ele assinar sempre os atestados de autenticidade das obras que a galeria vendia e também de sua filial em Brasilia. Era tudo muito organizado. Hoje poucos artistas fazem isso. Eu quando vendo minhas gravuras, elas vão acompanhadas de certificado de autenticidade, ficha técnica, assinatura registrada em cartório. Se os artistas novos não fazem, aí é um problema deles, mas eu tenho esse cuidado. Até hoje acredito que já tenha feito em torno de mil gravuras além das pinturas e colagens. Todas estão registradas em número, com data, título, número de impressão e técnica empregada. 



André de Miranda em seu ateliê no Rio de Janeiro

André, nesse ano em que você completa 40 anos de gravura, haverá alguma exposição ou retrospectiva de sua carreira? Pode nos adiantar alguma novidade?

AM: Sim, nesses 40 anos de gravura, já fiz 43 individuais pelo país inteiro além de muitas participações em bienais internacionais de gravura. Todo esse prazer e amor que a gravura me proporciona será coroado com uma grande exposição retrospectiva no Museu de Arte de Blumenau em Santa Catarina no mês de setembro. Na mostra estarão não só as obras de todas as séries que desenvolvi durante todo esses anos como também, desenhos de estudos e algumas matrizes.


JULIO REIS

 

Você pode ter uma obra deste grande artista na sua casa. As obras do André de Miranda estão à venda nesse site. Basta clicar em http://www.opapeldaarte.com.br/miranda-andre-de/ e escolher a sua próxima aquisição


Imagem da Roberto Magalhães: entrevista para a série Depoimentos do livro Gravura Brasileira Hoje
Roberto Magalhães: entrevista para a série Depoimentos do livro Gravura Brasileira Hoje

Em 1995 a Oficina do SESC-TIJUCA publicou três livros de entrevistas denominados “Gravura Brasileira Hoje - Depoimentos”. A publicação foi editada pelas professoras Heloisa Pires Ferreira e Maria Luiza Luz Távora a  partir das entrevistas feitas por Adamastor Camará,  onde foram colhidos os testemunhos dos mais importantes artistas gravadores do país. Tal publicação tem uma importância histórica relevante para a compreensão do percurso da gravura no Brasil e a coleção,  além de estar esgotada, não é facilmente encontrada nem em acervos públicos. Por isso, a Galeria O Papel da Arte estará reproduzindo todas as entrevistas publicadas e assim  contribuindo para o conhecimento da arte da gravura e da sua história através de seus maiores expoentes. Aproveitem e conheçam a trajetória destes maravilhosos artistas.



“Batalha I”, 1963. Xilogravura de Roberto Magalhães.

Como é que você chegou a desenhar? Como foi seu início na arte?

RM: Sempre desenhei. Desde garoto, desenhava muito. Até eu ingressar no ateliê da Escola Nacional de Belas Artes, não conhecia nenhum artista, não conhecia ninguém. Então eu desenhava muito sozinho, sem orientação. Eu tinha 22 anos nesta época. Foi quando entrei para o ateliê de gravura, em 1962, e fiz exposição na galeria Macunaíma. Desenhos também, desenhos surrealistas a bico-de-pena.


Críticos e ensaístas da época dizem que você já aparece com estilo definido, como se tivesse muito tempo de trabalho…

RM: Pois é. Nunca raciocinei muito encima da minha arte. Sempre foi uma coisa muito espontânea e se, por acaso teve um estilo mais definido, foi por espontaneidade, não através do intelecto, do pensamento.  Eu lia muitos livros de iniciação científica – coisa que gosto muito, além da ficção científica. Era este o meu tipo de leitura, mais voltado para a ciência. Naquele tempo, as pessoas gravavam numa temática basicamente expressionista. Era a escola de Goeldi, da xilogravura expressionista. Mas eu comecei a gravar, talvez por intuição, num processo diferente. Algumas pessoas me criticavam e diziam que aquilo não era xilogravura. Não era assim que se fazia uma xilogravura. Mas, eu pergunto: Não era gravada na madeira?


Mas o que você fazia que não consideravam  gravura?

RM: Era xilogravura. Eu fazia um desenho no papel, quadriculava o papel e passava esse desenho para a madeira. Ou então, desenhava direto na madeira, com pincel e nanquim, entende? Fazia o desenho na madeira. Eu desenhava o que seria o positivo. Isso, na época, as pessoas achavam uma heresia, que não era assim que se gravava.

Então eu fazia os estudos no papel, com nanquim. Tudo desenhado com aquela espontaneidade que o pincel dá. Dali, passava fielmente para a madeira, para a placa de madeira. E com isso suprimia as características expressionistas da gravura da época. Naquele tempo, ninguém fazia isso, compreende? Então, era como uma heresia mesmo,  gravar dessa maneira, não podia. Era proibido.

Na Escola, as pessoas ficavam chocadas  e me falavam que não era assim, não podia. Mas eu continuava. Entretanto não eram todas as pessoas, só algumas cabeças mais tradicionalistas. Comecei a frequentar a Escola de Belas Artes, quer dizer, fiz prova, não passei, mas assim mesmo comecei a frequentar e a conhecer os artistas, os alunos. Foi quando frequentei o ateliê de gravura, com o Adir Botelho. Lá é que eu vi que existia uma coisa que se chamava xilogravura, entende? E se cavava com a goiva na madeira e se imprimia.


Como foi o encontro com essa disciplina da Escola Nacional de Belas Artes?

RM: É, a Escola sempre foi assim mais ligada às formas acadêmicas. Mas aprendi muito lá, porque foi o primeiro contato que eu tive com artistas. Antes, eu trabalhava sozinho. O convívio foi muito bom para mim, não só contato humano, como com as técnicas também, de desenho e de pintura.

Era mais uma questão de amizade mesmo, amizade pessoal, apesar de não ter às vezes, uma ligação artística com determinada pessoa. Conheci gravadores bons naquele tempo, um que eu não ouvi mais falar, por exemplo,  é o Mário Pannuzio. Era ótimo, excelente gravador. Trabalhava lá na Escola, não sei mais dele.

A Enba era um lugar ótimo em todos os sentidos. Depois, a facilidade de frequentar a Escola, livremente, acabou no tempo da ditadura. Começaram a jogar umas bombas na porta da escola. As pessoas começaram a ficar com muito medo e aí fecharam mesmo. Quem não fosse aluno não podia entrar, e o clima de companheirismo desapareceu.


Você foi fazer gravura com Adir. Como é que foi exatamente a sua reação a essa aceitação tão pronta da crítica ou dos jornalistas que viam seu trabalho naquele momento?

RM: Eu nem entendia muito como isso acontecia porque foi muito rápido. Inclusive, comecei a sobreviver com as gravuras que vendia. Quer dizer, tinha uma vida muito modesta mas, vendendo umas gravurinhas por mês, já dava para viver.

Fiz exposições coletivas lá na Escola de Belas Artes mesmo,  numa galeria que hoje é uma sala, logo na entrada à direita. E as minhas gravuras começaram a ser vendidas. E como as tiragens eram de vinte cada, vendia várias vezes. Então, já dava para eu viver de arte.

O meu trabalho de desenhista de propaganda ajudou muito no meu processo de trabalho. Aprendi muita técnica gráfica, de impressão, técnicas de desenho para ser reproduzido. Muitas vezes eu pegava um desenho, pedaços de desenhos, e juntava, fazendo um desenho maior, o que também era outra heresia, não? Ia juntando e formava uma coisa que eu achava que dava uma boa gravura. Comecei a me entusiasmar porque o resultado era muito bom. Ficava mesmo satisfeito com aquilo que eu estava fazendo.

Então, comecei a gravar. E gostava mesmo de gravar. E gravava muito. Eu trabalhava sempre doze horas por dia. Só em madeira: peroba ou canela. Antes, eu trabalhava em empresa de publicidade. Fazia lay-out e arte final. Entretanto, não conseguia me adaptar nos lugares em que trabalhava. Primeiro, porque não gosto de horário, acordar cedo, aquelas coisas. E depois, havia as limitações mesmo da encomenda. Quem manda no seu trabalho não é você. Você tem que se submeter àquelas normas do cliente. Fiquei trabalhando em publicidade talvez uns três anos.

Mas, antes ainda, desenhei rótulos de cachaça, vinhos e tal. Meu tio tinha uma gráfica e ele me encomendava os rótulos. Quer dizer, eram letras para os rótulos, desenhos, essas coisas. Fiz muita capa de livro e ilustrações. Fiz ilustrações para a Revista Senhor por volta de 1962-1964 e para outras revistas que nem me lembro. A publicidade me deu a visão objetiva dessas coisas gráficas, de impressão. O que era difícil era o lado comercial, não conseguia me adaptar.

Quando fiz a exposição na Macunaíma e comecei a vender xilogravuras, aí decidi mesmo parar de fazer publicidade e viver somente do trabalho de arte. Há vinte e cinco anos ,não faço mais gravuras e não sei, realmente, porque motivo larguei.

Você tentou outras técnicas de gravura?

RM: Muito depois cheguei a fazer algumas litos e algumas gravuras em metal. Mas muito poucas. No Parque Lage, fiz uma tiragem de lito. Mas só desenhei, a impressão foi do Antonio Grosso. Aliás, na área de impressão, tanto de lito ou de metal, nunca mexi, não conheço nada.


“O arrependimento é carga pesada”, xilogravura de Roberto Magalhães, 1969.


GRAVURA: REPRODUTIBILIDADE. O MÚLTIPLO COMO DESTINO


Que considerações você pode fazer acerca do caráter multiplicador da gravura? Faz sentido a cópia única em gravura?

RM: Mesmo tendo a gravura um caráter multiplicador, não me oponho a uma experiência impressa  numa única cópia.


TRADICIONALISMO E VANGUARDA EM GRAVURA


Uma postura mais tradicional ou vanguardista na gravura, a seu ver estariam relacionadas à escolha de uma determinada técnica de gravura?

RM: Uma linguagem mais tradicional ou vanguardista na gravura nada tem a ver com a técnica de gravura, e sim com a forma, com a “linguagem” do artista.


ENSINODA DA GRAVURA: SUA DIFUSÃO E INFLUÊNCIAS 


Você acha possível ensinar arte?

RM: É possível orientar a pessoa dentro do seu caminho pessoal. É preciso levá-la a descobrir este caminho e isto só se dá com o trabalho. O orientador tem que ver por onde é que a pessoa se expressa melhor e deixá-la se conduzir por aquele caminho.

Cheguei a dar aulas por pouco tempo no MAM, do Rio, por volta de 1974. Gosto de dar aulas. É preciso salientar que, no meu trabalho, a chapa de gravura é algo a ser trabalhado por suas características escultóricas. O que me atraía era o trabalho meticuloso. Sempre gostei do relevo da madeira, a escultura, que me permitia trabalhar com maior delicadeza e precisão, eu vibrava com o relevo que saía da madeira.


 A GRAVURA E A CRÍTICA DE ARTE


Como você vê a crítica de arte no Brasil? Ela tem dado conta das questões que envolvem seu trabalho?

RM: A crítica de arte, na minha opinião, foi deixando de existir. Parece que as pessoas foram perdendo a paciência de se dedicarem a texto densos e extensos sobre arte. Preferem agora uma leitura mais leve, mais jornalística. Os próprios críticos, desorientados com os caminhos da arte, não se arriscam mais a opiniões pessoais contentando-se com uma abordagem descritiva e superficial das obras. É claro que há exceções.


Fonte:

Gravura Brasileira Hoje Depoimentos
SESC Regional do Rio de Janeiro
(org. Heloisa Pires Ferreira e Maria Luiza Luz Távora)
Rio de Janeiro: SESC/ARRJ, 1995